A QUIMBANDA & A LEI DO RETORNO

Postagem do Instagram: a Quimbanda não se preocupa com a Lei do Retorno? Tecnicamente não!


Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanagô

Em janeiro 2022 eu fiz um artigo que nomeei Tudo Volta, publicado aqui
no blog. Na mesma época eu fiz uma sequência de vídeos nos Storys no meu perfil
@tatakamuxinzela no
Instagram, que estão disponíveis nos destaques com o mesmo nome (Tudo Volta 1,
2, 3 e 4), e tratam do mesmo tema. Eu não pretendo repetir aqui, na forma de
recapitulação, tudo o que eu falei nesse material já disponibilizado, que
inclui uma visão banto sobre o assunto. Assim, peço a vocês meus leitores que
leiam o artigo e vejam os vídeos, antes de passarmos as minhas considerações
finais.
 

A famigerada lei do retorno é uma releitura contemporânea
da lei da causalidade, mas com implicações morais. No entanto, a aplicabilidade
da ideia é anticósmica, no sentido que vai contrário ao ordenamento cósmico, ao
entendimento técnico, i.e. ao pé da letra, da causalidade. Vulgarmente se
entende assim: se eu faço coisas boas, segundo a lei do retorno, só coisas boas
vêm a mim, em retribuição as minhas ações; se eu faço coisas ruins, por outro
lado, só coisas ruins vêm a mim. O cosmos não funciona assim! O cosmos não
entende ou responde segundo premissas morais. Coisas boas e ruins acontecem a
homens bons e ruins de um modo ou de outro, e o hermetismo tradicional chama
isso de destino (heimarmene):
 

Todas as coisas são obras de heimarmene, ó filho, e sem
ela não existe nenhuma das coisas corporais: nem coisa boa e nem coisa má vêm a
existir. E tem sido decretado também sofrer coisa boa [quem tem atitudes más]
.[1]
 

Muitos perguntam se existem relações entre a Quimbanda e
o hermetismo tradicional. Pode se dizer que sim! A Quimbanda compartilha de
muitos pontos de vista delineados no Corpus Hermeticum, como o entendimento do
destino e da causalidade. A Quimbanda como o hermetismo tradicional tem um
entendimento clássico e lúcido sobre a causalidade, uma visão crua. Por
exemplo: se eu me lanço do penhasco, me espatifo no chão. A causa: me atiro do
penhasco. O efeito: me espatifo no chão. Não há nenhuma leitura moral sobre
isso. Sendo bom ou mau, agindo bem ou com maldade, se eu me lanço do penhasco,
vou me espatifar no chão de qualquer jeito. Ninguém escapa do destino, já ouviu
esse ditado? O Corpus Hermeticum diz que não é bem assim: o homem noético, i.e.
o homem que tem conexões com o nous, consegue superar as artimanhas de heimarmene.
Somente os profanos, os não-iniciados ao léu das paixões, não escapam do
destino.
 

Um viciado que mata e rouba, é ação de heimarmene; o dono
da loja que morreu assassinado por um assaltante, é ação de heimarmene; um
marido que adultera seu casamento, é ação de heimarmene; uma esposa traída que
deixa o lar, é ação de heimarmene; um pai que não sabe educar seus filhos, é
ação de heimarmene; os filhos que crescem traumatizados pelo convívio com o
pai, é ação de heimarmene; o coração que bate sem que um indivíduo tenha
controle e que, de repente, pára, é ação de heimarmene; um acidente no trânsito
devido a uma falta de atenção, é ação de heimarmene; a morte de uma dócil
criança atropelada no acidente, é ação de heimarmene; a estrutura de uma casa
mal construída, é ação de heimarmene; uma casa que se esfacela na tempestade
por falta de estrutura, é ação de heimarmene etc. Tudo o que ocorre dentro do
ordenamento cósmico no Mundo em seus ciclos de metábole (dissolução e
coagulação), seja algo bom ou ruim, natural ou social, é ação de heimarmene.
 

Somente o iniciado, o hierofante nos mistérios, escapa de
heimarmene, penetra o Aion,[2] que leva a
transcendência e deificação da alma. Sejam quais forem às atitudes de um
indivíduo, boas ou más, é ação de heimarmene; é ela que os impele a desejar,
apegar-se as paixões e sofrer por elas, matar por elas, morrer por elas.
 

No hermetismo tradicional o nous é a inteligência divina
no homem. É o nous que possibilita a comunicação espiritual e o impulso de
transcendência. É a partir do nous que o homem escolhe a vontade, o ímpeto de
transcendência, ao invés dos desejos. Via de regra, qualquer ação impelida pelo
nous transcende o poder restritivo de heimarmene (o destino) e, portanto, a
causalidade. Quando uma ação é impelida pelas paixões, ela invariavelmente
estará conectada a força da causalidade. Na cultura yorùbá, esse é o papel do
Orí. Mas na cultura banto, que provê o pano de fundo cosmológico da Quimbanda e
cuja fórmula mágica difere, quem faz isso são os Bakulos, ancestrais
divinizados e que, na Quimbanda do Brasil são chamados de Exu e Pombagira.
 

Você já deve ter ouvido algum kimbanda dizer que as suas
ações magísticas não sofrem qualquer influência da lei do retorno. Isso é
verdade, mas a maioria dos kimbandas não consegue explicar o porquê. Como
orientei, a lei do retorno é moral e, por causa disso, as explicações tendem
para essa resposta pobre: porque a Quimbanda é amoral. As ações magísticas de
um kimbanda genuíno são orientadas pela espiritualidade, pelos Espíritos Gangas
tutelares, e não a partir de seus desejos e paixões. Nós dizemos que na
Quimbanda nada é por nossa cabeça; tudo é orientado diretamente pelos Gangas
tutelares. É por isso que as ações magísticas de um kimbanda não estão sob o
poder do destino e da causalidade: elas foram inferidas diretamente no oráculo
e em acordo, portanto, a própria ordem do cosmos. Então quando se diz que a
Quimbanda é amoral, entenda que os agentes mágicos universais, i.e. os Exus,
operam dentro da Alma do Mundo (e que contém tanto o destino quanto a
causalidade), o corpo de Maioral, manipulando as correntes de força ódica, quer
dizer, as malhas do destino e da causalidade, e que qualquer idealismo moral
não implica impedimento algum para isso.
 

Táta Nganga Kamuxinzela

 

 



[1] Hermes Trismegistos. Corpus Hermeticum Graecum. Livro XII, Verso
5. David Pessoa de Lira Org. Pensamento, 2023, pp. 213.

[2] O tempo eterno. Veja o
artigo
Qual o Tempo de Exu?