QUIMBANDA, DEMONOLOGIA & DIABOLOGIA
Por Táta Nganga Kamuxinzela
@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago
Então a ponte de
conexão entre a Quimbanda, a demonologia e diabologia europeia e a feitiçaria
dos grimórios, foi reforçada a partir da década de 1950, quando se inaugura o segundo momento do Culto de Exu no
Brasil, onde a Quimbanda ganha um corpo sistêmico de práticas completamente
independente da estrutura da Umbanda: nasce a Quimbanda como tradição
mágico-iniciática. Utilizo o termo reforçada
porque ainda no primeiro momento,
essa corrente demoníaca-diabólica já havia chegado as Macumbas cariocas através
de O Livro de São Cipriano.
Na linha do tempo, portanto, a primeira incursão diabólica ocorre com a chegada
de O Livro de São Cipriano
e sua influência na identidade mágico-religiosa das Macumbas cariocas; a
segunda incursão diabólica ocorreu com a fusão entre os Exus das Macumbas e os diabos do Grimorium
Verum, quando nasce a Quimbanda efetivamente na década
de 1950.
Os demônios, portanto,
passaram a integrar definitivamente o cosmos da Quimbanda, compartilhando com
os Exus e Pombagiras os éteres ctônico, telúrico e aéreo sublunares. A natureza
demoníaca que chegou até a Quimbanda com a introdução de demônios no seu
sistema foi àquela derivada da visão teológica do status quo
religioso de nossa cultura: a interpretatio christiana,
muito embora a visão do Grimorium Verum
acerca destes espíritos seja muito mais complexa, derivada da feitiçaria cipriânica
popular europeia, que herdou muitas raízes da magia, prática religiosa e
cultura greco-romana. No segundo volume do Daemonium
eu destaco que a interpretação acerca dos espíritos sublunares dos grimórios
tardios como o Grimorium Verum
compartilha das duas interpretações: i. o daimon
greco-romano e; ii. o demônio judaico-cristão. Quer dizer, estes espíritos são
tidos tanto como agentes intermediários
quanto anjos caídos transformados em espíritos malignos, os demônios.
A corrente mágica da
goécia derivada do Grimorium Verum
trouxe para a Quimbanda essa dupla interpretação e, portanto, uma dupla forma
de se lidar com os espíritos, tantos os Gangas quanto seus diabos auxiliares. Aliás, a forma popular
de se referir aos Exus como diabos,
é uma herança do Grimorium Verum,
onde os espíritos são chamados de diabos.
Até o entendimento da paga
de Exu na Quimbanda deriva do Grimorium Verum.
Tendo sido criada essa
ponte entre a goécia necromântica da Quimbanda e a goécia nigromântica do Grimorium Verum no segundo momento do Culto de Exu no
Brasil, todo imaginário diabólico e demoníaco que envolvia esse grimório – considerado
já no renascer da magia
no fim do Séc. XIX como um livro de magia diabólica, envolvendo sacrifícios
animais e o famigerado pacto diabólico
– invade e permeia todo imaginário da Quimbanda. No imaginário cultural
brasileiro, os demônios são: i. espíritos malignos (sendo qualquer força
sobrenatural maligna, o próprio Diabo; um ídolo ou falso deus; ou um espírito
diabólico que possui uma pessoa ou animal); ii. espírito, pessoa ou animal
cruel, destrutivo e diabólico; iii. uma fonte de grande mal, destruição,
sofrimento e aflição.
A partir desse encontro
e miscigenação mágico-cultural entre Exus e demônios, é cristalizado no
imaginário brasileiro o Exu-Diabo da Quimbanda. De sua herança judaico-cristã,
onde é tido como um anjo caído,
o Exu-Diabo da Quimbanda é uma inteligência maligna, ardilosa e enganadora. De
sua herança greco-romana – que está em sincronia direta com sua herança banto e
yorùbá – o Exu-Diabo da
Quimbanda é um agente intermediário
entre o kimbanda e todo o corpo
do Chefe Império Maioral, em outras palavras, o próprio Cosmos e todos os
espíritos que nele habitam, mortos ou encantados.
Na cultura greco-romana
o daimon pode ser qualquer tipo
de espírito, maligno ou benfazejo, ou um espírito tutelar. Essa compreensão
acerca dos espíritos manteve-se viva nas culturas mágicas populares da Europa e
chegou primeiro ao Brasil com as feiticeiras degradas da Inquisição e O Livro de São Cipriano. No Brasil, a noção
greco-romana do daimon
como um mensageiro intermediário entre os homens e os deuses, distribuidor de
bonança e riqueza, espírito tutelar condutor do destino dos homens, o espírito
de antigos heróis deificados, ou os mortos sem descanso etc., está muito mais
próximo das concepções acerca dos Exus do que dos demônios, muito embora
qualquer tipo de comparação seja imprecisa, guardadas as proporções e
diferenças culturais. E no processo de desenvolvimento da Quimbanda – pelo
menos na vertente tradicional Nàgô – os demônios agregaram mais força e poder ao
trabalho dos Exus, que os comandam.
Os demônios do Lemegeton, Grimorium
Verum e outros da rica e extensa demonologia europeia,
portanto, servem aos Exus na Quimbanda Nàgô, que desenvolveu métodos próprios
para convocá-los e colocá-los sob a autoridade de Exu e Pombagira.
A diabologia na
Quimbanda é iconográfica e simbólica. Iconográfica porque desde que o òrìṣà
Èṣú demonizado do Candomblé chegou as Macumbas, Exu ganhou contornos
iconográficos demoníacos, que foram reforçados definitivamente com a incursão
diabólica que ocorreu na Quimbanda a partir de 1950. Simbólico porque o Diabo é
símbolo de oposição ao status quo religioso e moral da sociedade
cristianizada. O Chefe Império Maioral na Quimbanda tem uma significação
esotérica muito mais profunda que a carapaça de Diabo que o representa como
ícone de culto.
A incursão diabólica
que ocorreu na Quimbanda em 1950 abriu um portal através do qual os espíritos
da demonologia europeia – terríveis e tortuosos demônios como Asmodeus,
Ashtaroth, Beelzebuth e Lúcifer – projetaram-se impiedosamente para dentro da Macumba
brasileira. No epicentro dessa invasão demoníaca estava Aluízio Fontenelle, o
umbandista ocultista que abriu o portal.
No entanto, dez anos
antes de Fontenelle outro importante umbandista lhe havia pavimentado o
caminho: Lourenço Braga, que abriu e apresentou o Primeiro Congresso de Umbanda
de 1941. Braga discerniu entre a Lei de Umbanda
e a Lei de Quimbanda criando a
partir de então a ideia da Quimbanda como uma linha de
trabalho diferente da Umbanda. Essa ideia se espalhou como
tiririca por todas as escolas umbandistas, das mais celebradas as de menor
expressão.
Mas foi com Aluízio
Fontenelle que a Quimbanda como linha de trabalho
distinta da Umbanda, e portanto independente dela, ganhou corpo substancial.
Fontenelle fomentou a eclosão de inúmeros núcleos familiares de Quimbanda, e
assim nasceram as primeiras famílias derivadas ou conformadas nas vertentes
tradicionais que conhecemos: Nàgô, Mussurumin, Malei, Caveiras, Almas, Caboclos
Kimbandas e Mista (kiumbas).
Eu falo desse assunto no
meu livro Daemonium Vol. 2, onde
apresento Aluízio Fontenelle como o ocultista brasileiro que conectou a
Quimbanda definitivamente a Tradição Oculta Ocidental,
transformando-a no primeiro culto brasileiro nigromântico,
no primeiro culto brasileiro declarado ao Diabo, contribuindo para a
cristalização de Exu como Diabo ou demônio no imaginário brasileiro.