A INCURSÃO DIABÓLICA NA QUIMBANDA
Por Táta Nganga Kamuxinzela
@tatakamuxinzela |
@covadecipriano | @quimbandanago
É significante o fato de
que é o Grimorium Verum a fonte que supriu estas «intrusões» dos
espíritos [i.e demônios] dos grimórios na Quimbanda.[1]
De algumas
perspectivas, aqueles que enfatizam exageradamente expressões puramente
literárias da cultura, o Grimorium Verum pode parecer ter sido
particularmente influente. A realidade é que, como um grimório popular com
fortes conexões com a magia folclórica, ele reflete de forma mais abrangente do
que outros as amplas tradições de magia popular de origem europeia que tiveram
um forte impacto no Novo Mundo. Não foi o principal veículo dessas tradições,
mas sim um reflexo literário singularmente rico delas. O verdadeiro veículo
dessas tradições foram as pessoas, incluindo milhares de ciganos no caso do
Brasil, cuja impressão na Quimbanda e, de fato, em toda a cultura, ainda é
poderosamente sentida. Os grimórios populares eram um aspecto da tradição, mas
enquanto estão entre os últimos vestígios dessa tradição na Europa, eles são
apenas uma pequena parte de sua sobrevivência no Novo Mundo. Em outras
palavras, muito do que foi perdido nas tradições mágicas europeias ainda
prospera nas religiões do Novo Mundo.[2]
A incursão diabólica que aqui irei me
debruçar é àquela que ocorreu em detrimento da nova síntese da magia promulgada
por Aluízio Fontenelle na década de 1950 e que deu nascimento a Quimbanda como
a conhecemos hoje. No segundo volume do Daemonium tivemos a oportunidade
de sumarizar inúmeros pontos dessa incursão diabólica, o que continuamos
no livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, e nas edições da Revista
Nganga. Entretanto, essa nova síntese da magia estabelecida por
Fontenelle, que inaugura o segundo momento do Culto de Exu no Brasil,
foi o ápice de um longo processo de miscigenação cultural que começou no primeiro
momento, i.e. no período colonial e imperial.
No período em que se desenvolveu a colonização,
degredo e o tráfico de escravos entre os Sécs. XVI e XVIII, o Brasil foi
considerado a terra do diabo. Os primeiros registros etnológicos
continham profundas resenhas demonológicas, e é por isso que a autora Laura de
Mello e Souza[3]
nomeou os autores desses registros de etnodemonólogos. A travessia no
Atlântico, o contato com a terra selvagem e seus habitantes, foram
completamente descritos sob as lentes do imaginário europeu da época, no mesmo
período em que eclodia o fenômeno cultural da bruxaria que pode ser resumido em
três pontos: i. o contato com diabos pessoais (i.e. familiares mágicos); ii. o
pacto que se estabelece com o Diabo e a idolatria dele decorrente; e iii. o sabbath,
a festa das bruxas. Esses registros etnodemonológicos tiveram um impacto
profundo no imaginário europeu, causando fascínio, medo e repulsa nas mentes
europeias. Na época em que o continente descoberto deixou de ser chamado de Terra
de Santa Cruz para ser conhecido com o nome que carrega hoje, Brasil,
muitos desses autores e até as autoridades da Igreja chegaram a acreditar que
haviam perdido o novo continente para o Diabo.[4]
Matas fechadas, infestação de insetos, correntezas
e terras áridas, tempestades e alagamentos, tudo o que a natureza selvagem
oferecia era considerado pelos etnodemonólogos maquinações arranjadas pelo
Diabo para evitar que o poder da Cruz de Cristo se estabelecesse no novo
continente. Como o Diabo havia fugido da Europa para o Brasil, porque lá o
poder da Igreja o expulsou, o novo continente se tornou também o novo campo
de batalha entre Deus e o Diabo. Esses autores descreviam os pajés
curandeiros como feiticeiros e as parteiras como bruxas.[5]
Então quando falamos de incursão diabólica temos de nos lembrar que
desde que o Brasil foi descoberto, iniciou-se também uma luta entre Deus, seus
anjos, santos e representantes terrenos, contra o Diabo, seus demônios, e os
idólatras que os cultuam pelo domínio da terra. E no imaginário de muitos
cristãos europeus dos dias de hoje, o Brasil permanece a terra do diabo.
Bom, se o Brasil é a terra do diabo de fato, então faz todo o sentido a
Quimbanda, a bruxaria brasileira, representar no imaginário brasileiro uma
expressão legítima deste domínio, reinado e rebelião do Diabo.
Durante esse longo período que constituiu o primeiro
momento do Culto de Exu no Brasil, estabeleceu-se uma intensa miscigenação
cultural entre os povos indígenas, os povos africanos e os povos europeus,
iniciando uma intricada amálgama de tradições mágicas que se sincretizaram em troncos
diversos. O sincretismo se caracteriza fundamentalmente por uma intermistura
de elementos culturais. Uma íntima interfusão, uma verdadeira simbiose, em
alguns casos, entre os componentes das culturas que se põem em contato.
Simbiose que dá em resultado uma fisionomia cultural nova, na qual se associam
e se combinam, em maior ou menor proporção, as marcas características das
culturas originárias.[6]
A Quimbanda, com sua fusão entre os Exus e os diabos do Grimorium Verum
a partir do segundo momento, é o resultado desse longo período de sincretismos
religiosos que se estabeleceram de diversas formas em todo território
brasileiro. O autor Waldemar Valente,[7]
rastreando os troncos sincréticos que se formaram no Brasil, os elenca:
1) jeje-nagô; 2)
jeje-nagô-malê; 3) jeje-nagô-banto; 4) jeje-nagô-mina; 5) jeje-nagô-malê-banto;
6) jeje-nagô-malê-mina; 7) jeje-nagô-malê-banto-mina; 8) afro-tupi;[8]
9) afro-tupi-espírita; 10) afro-tupi-espírita-católico; 11)
afro-tupi-espírita-católico-protestante; 12) afro-tupi-espírita-cristão-teosófico;
13) afro-tupi-espírita-cristão-teosófico-esotérico.
Dentro destes troncos sincréticos que se
estabeleceram no Brasil você consegue determinar a origem de inúmeros Candomblés
tradicionais ou de caboclo, assim como a Umbanda e a Quimbanda, que se
enquadram nos troncos 12 e 13. Porque é impossível falar da fusão entre Exus e
demônios sem abordar a profunda questão do sincretismo religioso no Brasil.
Hoje criticado por inúmeros africanistas de olhos azuis, o sincretismo é
uma ferramenta do espírito religioso do homem, e ocorreu em todas as culturas
mágicas do passado. É somente na contemporaneidade que passamos a acreditar em
religiões puras dentro de contextos de degredos e diásporas; até o Séc. XIX
toda e qualquer cultura religiosa se adaptou, evoluiu e se miscigenou, sempre
na intenção de perdurar no tempo. Esses africanistas reivindicam um purismo
religioso que já não existia na África cristianizada e islamizada, quanto mais
no Brasil. Não há nada de puro nascido em terras brasileiras, sejam Candomblés,
Umbandas ou Quimbandas etc. Aqui, como se diz, é tudo junto e misturado: preto,
banco e amarelo. Essa desonestidade intelectual do purismo africanista chaga a
ser nojenta! No Brasil o cristianismo se crioulizou e ainda na África,
as culturas negras se cristianizaram e se islamizaram.
De certa forma, nem mesmo dentro da ciência da
religião é aceito que haja uma religião pura, pois todas as religiões surgem de
experiências culturais misturadas e por dentro delas se estabelecem e se
renovam. Se formos analisar pelo panorama das religiões de massa, podemos
afirmar sem nenhuma dúvida que o cristianismo surge das concepções
zoroastristas misturadas com as influências judaicas em menor grau, trazendo
assim a concepção por exemplo de bem e mal e de duas deidades brigando para se
estabelecerem, sem falar em outras consonâncias dentro da teologia. Quando
analisamos as muitas religiões encontramos situações próximas, mas narradas de
formas diferentes, vemos, por exemplo, o dilúvio defendido e acreditado se
tratar de um texto bíblico imutável, entretanto encontramos um dilúvio similar
em mitos gregos, onde Zeus querendo destruir os homens por causa de suas
perversidades envia um grande dilúvio com a ajuda de Poseidon para que todas as
águas dos rios e mares inundem toda a terra, engolindo tudo que havia por sobre
a terra. Porém Prometeu advertiu seu filho Deucalião e sua mulher Pirra sobre o
dilúvio, instruindo-os a construir uma barca, ou em outras palavras, uma grande
arca e no final do dilúvio ficou encalhado em uma montanha. Mas esse mito
também é presente na epopeia de Gilgalmesh, um poema épico mesopotâmico,
creditado por muitos como a narrativa mais antiga que se tem registro em
escrita. Então, podemos afirmar que o judaísmo acabou por sincretizar os
conhecimentos mesopotâmicos e por aí criou sua própria base teológica.
Contudo, sabemos que o sincretismo é algo que
acaba por incomodar as pessoas que não conseguem analisar nada muito além da
sua superfície revelada. O sincretismo é uma realidade e deve ser entendida
desta forma, pois o sincretismo está presente em todo território nacional,
mesmo não sendo exclusivo dele como tentam elencar alguns segmentos cristãos ou
de pessoas de religiões afro-diaspóricas que consomem de forma ignóbil apenas o
que revelam sites e tutores mal formados. O sincretismo religioso é um processo
de combinação ou aproximação de várias práticas religiosas ou crenças populares
em uma única forma de pensar. Ele ocorreu em todas as religiões da história
humana e não apenas no contexto religioso, mas cultural e comportamental. Vemos
uma expressão interessante do sincretismo de um povo dentro do Japão onde há
duas religiões dadas como oficiais e mais praticadas, sendo uma o xintoísmo e a
outra o budismo[9].
Há quem diga que no Japão todos nascem xintoístas, mas morrem budistas.
O movimento neopagão também é sincrético, onde
combinam-se várias divindades de diversos panteões em uma só estrutura de
pensamento, podendo uma pessoa evocar Zeus como deus maior de sua sessão e na
sequência chamar por Amateratsu, sem qualquer problema ou preocupação de
agradar a Brigite dos celtas.
O próprio cristianismo surge de uma dissidência de
pensamento judaico e se manifesta em Roma, usando a figura de um Jesus Cristo
similar com o Apolo greco-romano. A própria associação de feriados culturais
tidos como pagãos por cristãos é um processo sincrético, o dia de Solis
Invictus se torna o dia de nascimento de Cristo, a Páscoa se torna o dia de sua
morte e ressurreição etc. Esse mesmo movimento será seguido em terras
brasileiras quando associamos os feriados cristãos (alguns antigos feriados
pagãos) a data de comemoração dos santos, que na verdade são os òrìṣà. Tudo
isto é um processo sincrético.
Entretanto o grande incomodo sempre se dá quando
falamos de sincretismo de práticas afro-diaspóricas, seja da via africana para
europeia e vice-versa. Precisamos contextualizar que o Brasil é formado por
diversas etnias que erroneamente são reduzidas a três grupos: europeus, indígenas
e africanos. Entretanto quando se fala sobre Europeu na formação cultural de
base brasileira devemos nos lembrar que em sua maioria eram portugueses, grande
parte sem conhecimento ou estudo, muitos que foram enviados para cá como
penitência criminal, seja pelo motivo que for, de origem secular ou religiosa
como as heresias e perseguições da Igreja; quando falamos de indígenas em sua
maioria imaginamos os povos tupis, porém existiam diversos grupos culturais
diferentes, com línguas diferentes, estimando-se que havia entre 1 e 5 milhões
de indígenas em terras brasileiras, cada grupamento com um panteão próprio e
com práticas religiosas e espirituais próprias; e por fim os africanos, que são
dados como os grandes detentores dos saberes dos cultos de Quimbanda, Umbanda e
similares.
Porém, a África é um continente imenso com
diversas culturas e diversas etnias. Quando falamos em África tentamos reduzir
isso em pensamento, mas em um mesmo espaço, como por exemplo o Reino do Congo,
havia diversos tipos de culturas coexistindo pacificamente ou não. Os primeiros
homens trazidos como escravizados para o Brasil eram originalmente do Reino do
Congo e das regiões próximas a ele, como Benguela, Reino do Dongo (que se
tornará Angola), Luanda etc. A esses povos dessa região – apesar da sua
multiplicidade cultural – é dado o nome de cultura ou povos bantos.
Esses africanos escravizados de origem banto
chegam ao Brasil no Séc. XVI por volta de 1535 por vias oficiais. Há quem diga
que os povos bantos representavam 75% de todos os africanos trazidos para o
Brasil. Eles, povos bantos, encontraram-se com os povos indígenas, pois dentro
das senzalas[10]
e com certeza fizeram troca de saberes e de culturas, inclusive de cultura
religiosa, o que já demonstra uma forma de sincretismo natural ocorrendo, sem
passar pelos olhos do intelectual. Posso afirmar ainda, que ele já se dá em
África quando o Manicongo Nzinga a Nkuwu (Rei do Congo) decide enviar sua corte
para aprender os costumes e a religião portuguesa e ele mesmo se batiza como
João I dentro da religiosidade cristã, se arrependendo posteriormente, mesmo
assim usando dos seus saberes.
O entendimento aqui é que o povo banto tem uma
premissa diferente quando se trata de adaptação e absorção de conhecimento,
seja ele de que natureza ou origem for. Dentro da visão cultural banto, os nkisi
não são estritamente deidades, mas tudo aquilo que tem nguzo, ou seja, que tem
poder. Desta forma para uma pessoa de religiosidade banta é bem natural
absorver o santo de uma outra religião e entender ele como uma potência, uma
força ou um nkisi.
Há os defensores de um purismo no resgate a
culturas tradicionais, principalmente do povo de òrìṣà, entretanto, Nanã
Burukê, Omulu, Obaluaiê, Ewá, Oxumarê e Ossaim são divindades estrangeiras que
foram absorvidas na religiosidade yorùbá e passaram a compor seu panteão em um
processo sincrético, afinal, o que antes se dizia sobre Obatalá e Iemanjá serem
um casal (em algumas fontes), passam também a determinar que Obatalá tinha Nanã
Burukê como sua consorte, por quê? Este é um fato explicado quando sabemos que
Nanã não era uma divindade esquecida, mas a mais importante divindade de um
povo da região do atual Benin, antigo reino do Daomé, que quando absorvido pela
cultura yorùbá, não poderia ser reduzida em importância, colocando-a ao lado do
òrìṣà dado como mais velho, já que ela mesmo era a mais velha. Colocando assim,
vê-se que Nanã e Obatalá poderiam ocupar a mesma posição, porém em panteões
diferentes.
A questão do òrìṣà no Brasil também é complexa,
visto que a cultura yorùbá se tornou dominante na literatura, na cultura e na
arte, criando assim uma falsa impressão da pureza e da antiguidade desse culto.
Mas se pensarmos que os bantos não cultuavam òrìṣà, quem seriam as forças que
eles evocavam? Claramente, seus próprios deuses, na figura dos Mikice, que mais
tarde serão confundidos e absorvidos pelas figuras dos òrìṣà e reinterpretados
pela moda brasileira. A questão é: Será que o sincretismo já ocorria comparando
Lembadilê à Jesus Cristo ou isso só ocorre quando Oxalá toma a posição de
Lembadilê dentro da mente religiosa dos povos de terreiro?
Além da influência africana e indígena, temos
também a grande influência ibérica no pensamento religioso brasileiro. Quando
nos referimos as influências europeias estamos tratando das camadas mais pobres
e os egressos das terras portuguesas, que geralmente eram enviados para cá sob
acusação de heresia, profanação e bruxaria. Mas, se eram profanos, como
poderiam cultuar em bases cristãs? De fato, eles não cultuavam, pois muitos
desses camponeses tinham seus próprios métodos e tradições religiosas, que
sincreticamente, foram sendo associados ao cristianismo, mas de uma forma mais
popular e orgânica, sem imposição ou um grande pensamento intelectual sobre
isso, simplesmente aconteceu. Tanto é desta forma que essa prática popular de
bruxaria, atrelada aos conhecimentos cristãos e toda a sorte de influência
africana e indígena posteriormente irá resultar na Macumba do Séc. XIX e início
do Séc. XX, que por sua vez irá criar a Umbanda e Quimbanda.
Os Exus em suas figuras diabólicas muitas vezes
são encarados como entidades com defeitos de fabricação, pois quem defende o
purismo dos Exus irá dá-los como òrìṣà, mas sem entender a diferença
significativa entre a manifestação de um Exu-Entidade (nganga) e um Èṣú òrìṣà.
Quem defende o purismo de falangeiros, sem se atrelar a òrìṣà e ao
Cristianismo, refuta veementemente a versão diabólica destes Exus, dizendo que
a associação feita por Aluízio Fontenelle em seu livro Exu, das figuras dos
Exus com os demônios do Grimorum Verum, eram devaneios. De fato, nada
disso consegue se sustentar após um exame claro dessas entidades e de sua real
proximidade para com os demônios, porém não paramos nisso. Muito se diz sobre a
figura de Exu associada a diversos Santos, como o próprio Santo Antônio, Santo
Expedito e outros, além da associação até mesmo do Menino Jesus com a figura de
Legba em territórios cubanos e caribenhos.
Veja que apesar da crença cristã imputar ao cristo
uma visão de salvador bondoso do universo, ele em muitas visões religiosas é
visto como um grande dizimador da vida e da humanidade, vide ao Nosso Senhor do
Bonfim que foi idealizado por João de Camargo, em sua Igreja das Águas
Vermelhas, na cidade de Sorocaba em São Paulo. João de Camargo era um
brasileiro ex-escravizado, filho de africanos escravizados, que consegue sua
liberdade que não é bem explicada, mas é sabido da sua alforria. Ao lado de
suas imagens sempre havia suas pedras, criando a conexão da imagem iconográfica
clara de cultura cristã, mas também o seu processo de feitura pelas mãos do
próprio João de Camargo e de alguns de seus discípulos, como assentamentos
vivos (nkisi) conjuntamente a seus okutás (pedras) dispostas a sua frente.
Sabido é que João de Camargo chamava seu São Benedito as portas fechadas de
Rongondongo, um nome de clara natureza banto. Desta forma, essa natureza
tradicional banto de associação já existia desde épocas antigas na própria
África e foi natural a sua absorção pelas Macumbas, assim como por suas
derivativas como a Umbanda e Quimbanda. Desta forma, seja um Santo Antônio
sendo chamado de Exu, ou até mesmo a figura do Exu de Duas Cabeças, sendo
associado a Jesus de Nazaré e ao próprio Diabo em um só corpo irmanados, deixa
clara e evidente a condução de pensamento religioso e amalgamado que cria a
sociedade brasileira, sua cultura e sua religiosidade.
Outro fator associado ao sincretismo religioso e
que envolve diretamente a incursão diabólica na Quimbanda são os
grimórios populares que se crioulizaram no contexto da diáspora nas Américas. A
revolução da impressa que começa em 1455 com Johanes Gutenberg (1395-1468)
publicando a Bíblia Gutenberg, teve um profundo impacto na cultura do Ocidente,
tirando o monopólio da informação das mãos de uma elite aristocrata, e possibilitando
a difusão irrestrita do conhecimento. Esse processo também impactou
profundamente o gênero dos grimórios que, antes escassos, agora poderiam ser
encontrados em inúmeras versões populares. Aliás, a própria palavra grimório
como hoje a conhecemos vem deste contexto de publicações populares. No Séc. XVIII
a palavra já era amplamente utilizada para se referir a livros de magia na
França, porque acredita-se que sua raiz venha do francês antigo, grimaire,
que se referia a livros escritos em latim.[11]
Owen Davis diz:
A crescente indústria de
publicações na Europa ocidental, que produziu jornais e [encheu o mercado] com
livros direcionados a melhoria moral das massas, alimentou a busca por
literatura envolvendo a magia entre os leitores rapidamente. Obscurantismo, o
impulso autoritário de repressão ao acesso ao conhecimento estava vivo e era
crescente, mas foi difícil se perpetuar. Enquanto os Inquisidores Mediterrâneos
continuavam a exercer um controle considerável, em outros lugares os censores
seculares e religiosos travavam uma batalha perdida. Em nenhum lugar isso era
tão evidente quanto na França e no gênero dos livretos chamados de bibliothèque
blue [biblioteca azul]. Durante a primeira metade do século XVIII um milhão
de cópias desses livretos estavam sendo produzidos por ano. Eles incluíam
inúmeros tipos de assuntos, lícitos e ilícitos. Entre romances, guias práticos
de jardinagem e culinária, a vida dos santos e reflexões piedosas, nós
encontramos os segredos mais obscuros da magia desvendados.[12]
[…] Por um pequeno preço toda a riqueza da prática do conhecimento oculto
contido em manuscritos tão preciosos aos magistas parisienses estavam disponíveis
a todos, até aos mais pobres da sociedade. Milhares de grimórios da bibliothèque
blue circularam por todo o país durante o século e no próximo.[13]
[…] A influência dos grimórios da bibliothèque blue se expandiu para
além das fronteiras da França.[14]
Como mencionei na Revista Nganga No. 10,
foram os grimórios da bibliothèque blue – e de modo geral os grimórios
do gênero impresso e dentre eles o Grimorium Verum e O Livro de São
Cipriano – que mais se miscigenaram com as culturas religiosas da diáspora
nas Américas. Jake Stratton Kent diz:
Enquanto os grimórios
franceses [da bibliothèque blue] dessa época tiveram uma influência
muito além da França, o gênero de grimórios impressos como um todo exerceu uma
influência muito além da Europa. Os Livros de Moisés é o mais
cabalístico e certamente influenciou o Hoodoo nos Estados Unidos, mas não dizem
respeito especificamente a São Cipriano ou às fusões da goécia dentro de
tradições como a Quimbanda. O primeiro é melhor ilustrado pelos grimórios
ibéricos [da tradição cipriânica] e o último pelos textos franco-italianos como
o Grimorium Verum e o Grand Grimoire.[15]
[…] Esses
textos ibéricos incorporam o renascimento da goécia […] em comum com a Bibliothèque
Bleue franco-italiana. […] Da mesma forma, sua influência e harmonia com
tradições vivas e prósperas no Novo Mundo são importantes de reconhecer.[16]
E no seu comentário ao Grimorium Verum,
Stratton-Kent ressalta a influência e impacto desses grimórios populares na magia
afro-diaspóricas nas Américas, bem como a miscigenação mágica que restauraria
os antigos arcanos da magia ocidental por meio da nova síntese da magia:[17]
A influência de O Livro
de São Cipriano, bem como dos europeus que o trouxeram consigo, fez-se
sentir nas colônias espanholas e portuguesas pelo menos desde o século XIX.
Isso está bem além da conhecida influência da magia cabalística sobre o Hoodoo,
através de Os Livros de Moisés de fontes alemãs. […] De algumas perspectivas,
aquelas que enfatizam expressões puramente literárias da cultura, o Grimorium
Verum pode parecer ter sido particularmente influente. A realidade é que,
como um grimório popular com fortes conexões com a magia folclórica, reflete
mais amplamente do que outras tradições de magia popular de origem europeia que
tiveram um impacto poderoso nas [religiões] do Novo Mundo. Não foi o principal
veículo dessas tradições, mas uma reflexão literária singularmente rica delas.
O verdadeiro veículo dessas tradições eram as pessoas, inclusive milhares de
ciganos no caso do Brasil, cuja impressão na Quimbanda e mesmo em toda a
cultura ainda é fortemente sentida. Os grimórios populares eram um aspecto da
tradição, mas enquanto eles estão entre os últimos vestígios dessa tradição na
Europa, são apenas uma pequena parte de sua sobrevivência no Novo Mundo. Em
outras palavras, muito do que foi perdido nas as tradições mágicas europeias
ainda prospera nas religiões do Novo Mundo. O fato é que existem elementos da
velha magia europeia que influenciaram as tradições do Novo Mundo que não são
representadas em [outros] grimórios além de Verum.
[…] É de
particular interesse que nas tradições de Umbanda e Quimbanda do Brasil a
hierarquia de Verum tenha sido amplamente associada a espíritos
conhecidos como Exus, e muitas das correspondências entre os dois são
surpreendentemente apropriadas.[18]
A colonização, a escravidão, o trabalho imigrante
nas Américas e a crioulização dos grimórios populares impressos como O Livro
de São Cipriano e o Grimorium Verum, produziram uma fascinante fusão
de crenças e práticas religiosas, mágicas e medicinais, derivadas da Europa,
das culturas africanas e dos povos autóctones ameríndios, dos quais, no Brasil,
nasceram a Jurema, a Umbanda e, no caso da Quimbanda, permitiram uma profunda incursão
diabólica. Eu cito em especial essas três culturas mágicas, a Jurema, a Umbanda
e a Quimbanda, porque são elas que foram profundamente influenciadas pela
crioulização de O Livro de São Cipriano e o Grimorium Verum. Como
demonstrei no meu artigo A Trindade Infernal: Sataná, Caifás e Barrabás,
O Livro de São Cipriano teve profunda influência na formação da Jurema e
da Macumba carioca, a genetrix da Umbanda e da Quimbanda. O Grimorium
Verum, herdeiro do diabolismo e da demonologia europeia, assim como um substrato
da própria ideia de bruxaria como fenômeno cultural medieval, mudou
completamente a estrutura da Quimbanda, dando a ela a forma que hoje conhecemos
na síntese estabelecida por Aluízio Fontenelle.
[1] Jake Stratton-Kent. The True
Grimoire: Encyclopaedia Goetica, Vol. I. Scarlet Imprint, 2022, pp. xii.
[2] Jake Stratton-Kent. The True
Grimoire: Encyclopaedia Goetica, Vol. I. Scarlet Imprint, 2022, pp. 197.
[3] Laura de Mello e Souza. Inferno
Atlântico: Demonologia & Colonização Séculos XVI-XVIII. Companhia das
Letras, 1993.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem. Veja também Luís Rafael Araújo
Corrêa. Feitiço Caboclo: Um Índio Mandingueiro Condenado pela Inquisição.
Paco Editorial, 2018.
[6] Waldemar Valente. Sincretismo
Religioso Afro-Brasileiro. Brasiliana, 1977, pp. 11.
[7] Ibidem, pp. 107-9.
[8] N.T. Aqui afro representa o composto
jeje-nagô-malê-banto.
[9] Xintoísmo é uma religião nacional e
original japonesa que bebe de muito xamanismo das terras nipônicas. O budismo é
uma religião criada por Sidarta Gautama, que era um nepalês ou indiano,
variando as fontes.
[10] O termo Senzala deriva do quimbundo
Sa’nzala, que significa povoação.
[11] Humberto Maggi. Goetia: História
& Prática. Clube de autores, 2020, pp. 114-5.
[12] Owen Davis. Grimoires: A History
of a Magic Book. Oxford University Press, 2009, PP. 94-5.
[13] Ibidem, pp. 98.
[14] Ibidem, pp. 109.
[15] Jake Stratton-Kent. The
Testamnent of Cyprian the Mage. Scarlet Imprint, 2014, pp. 3-4.
[16] Ibidem, pp. 4.
[17] Sobre a nova síntese da magia
veja Revista Nganga No. 10.
[18] Jake Stratton-Kent. The True
Grimoire: Encyclopaedia Goetica, Vol. I. Scarlet Imprint, 2022, pp. 196-8.