A CORRENTE ÓRFICA DO REINO DA LIRA
Por Táta Nganga
Kamuxinzela
@tatakamuxinzela | @covadecipriano
| @quimbandanago
A Quimbanda é filha da Pequena África, uma
comunidade de escravos alforriados ou fugitivos remanescentes dos períodos
colonial/imperial de várias etnias africanas, negros cristianizados,
islamizados etc. e um antro de capoeiras, cafajestes, prostitutas e pivetes na
região portuária do Rio de Janeiro que buscavam e encontravam identidade e
acolhimento cultural, local que se tornou o berço do samba, intimamente
associado às casas de Macumba e de Candomblé no início do Séc. XX. Foi na Pequena
África que a «colcha de retalhos» da Quimbanda começou a ser costurada devida
intensa descarga de energia e intercâmbio cultural, atuando como um ponto de
força catalisador para conformação dos Reinos de Exu. A Pequena África como
zona de poder, com bares, hotéis, bordeis, tráfico de drogas, comércios de todo
tipo, centros e casas de religião, peregrinações e visitas turísticas etc.,
tudo isso com encruzilhadas, enseada, mata, cruzeiros, igrejas e cemitérios,
movimentos energéticos de causas naturais e humanas, deu início a conformação
da Quimbanda como a conhecemos, como se romanticamente a Quimbanda fosse filha
da «Casa da Lira».
Lira é o nome dado a um dos Reinos da Quimbanda,
assim nomeado em função do instrumento mágico-musical criado pelo deus Hermes
de mesmo nome e que nos cultos órficos da Grécia antiga esteve associado a
Orfeu que, inconformado com a morte de sua esposa desceu ao Submundo e com sua
voz e o som da lira que carregava encantou todo o mundo ctônico: a Roda de
Exíon parou de girar, as pedreiras de Sísifo deixaram de oscilar, Tântalo se
esqueceu completamente da fome e da sede, as Danaides descansaram de seu
trabalho eterno e até Hades adormeceu. Após incansável obstinação em romper as
trevas do Submundo em direção à luz, Orfeu retornou do mundo dos mortos. Esse é
um mito com muitas camadas. A catábase de Orfeu é àquela mesma tradicional do
xamanismo: o iniciado morre na contemplação do além sobrenatural e
«encontrando-se», torna-se detentor do mistério. De posse do arcano, ele é
transmitido a outros que, levantando-se das sombras para clareza da vida,
preparam-se para imortalidade da alma.
Orfeu foi músico, poeta, profeta e o inventor da
teologia pagã. Com sua lira ele encantava pássaros, feras e homens,
colocando-os a dançar em êxtase ou acalmando-os em sono dopaminérgico.
Celebrado iniciado nos mistérios, um Herói do mundo grego antigo, ele educava
bestas selvagens a tornarem-se homens civilizados, levantando espíritos caídos
e obscurecidos (ignorância espiritual) a se tornarem indivíduos luminares
(clareza espiritual) no intuito de vencerem a obscuridade e de alcançarem a
«imortalidade». É lá, entre os «Imortais» nos Campos Elísios, que Orfeu espera
ao som de sua lira os adeptos de seu culto. Compreender Orfeu, o orfismo e os cultos
dionisíacos é o melhor caminho para começar a se compreender a força mágica do
Reino da Lira.
O orfismo foi um conjunto de tecnologias
espirituais que envolviam a dança e celebração da música, da poesia e da
literatura como mecanismos de transe, êxtase, catarse e gnose que, embora
alimentado por influências dionisíacas, pitagóricas e apolíneas, contrasta
todas elas, porque as celebrações órficas tinham objetivos soteriológicos
apenas, a busca pela transcendência das trevas em luz; por esse motivo Orfeu
foi instruído a não olhar para trás quando caminhava para fora do Submundo. O
«não olhar para trás» é o desapego que a alma deve ter em relação à escuridão e
ignorância, despertando para luz. (Leve este conhecimento para seus despachos!)
Homens que celebravam os mistérios órficos eram convidados a entrarem sem
armas, quer dizer, vazios completamente do apego a transitoriedade do corpo e a
experiência da corporificação para serem totalmente preenchidos pelos «encantos
líricos inebriantes». Essa é a «fórmula mágica» do Reino da Lira, a festa, a
dança, o canto e o frenesi para transcendência do profano e a admissão ao reino
do sagrado. É isso que encontramos em um toque de Quimbanda, o sabbath das
bruxas e as núpcias com o Canhoto! O Reino da Lira na Quimbanda, como o nome
aponta, é órfico e ele o herda pelos arcanos mágicos que preserva através das
ações dos Exus e Pombagiras da Lira.
O Reino da Lira é um dos Reinos mais
surpreendentemente intrigantes. Ele poderia ser comparado a Opus do Atu XV, o
Diabo do Tarot e a imagem do Bode de Mentes, o trabalho do Homem Negro do
Sabbath. O Reino das Trevas está diretamente associado ao Reino da Lira, como
seu aspecto sombrio e vampírico, representando a bestialidade desenfreada, a
ignorância soberba de si mesma, o homem perdido em vícios diversos, drogas,
sexo, álcool e diversões de todos os tipos. É por isso que na Quimbanda Lúcifer
conecta-se diretamente ao Reino da Lira.
Na Quimbanda Mussurumim o arcano luciférico da
vitória sobre a ignorância espiritual é representado no sincretismo entre
Lúcifer e Exu Rei da Lira (vulgarmente conhecido como Sr. Sete da Lira), porque
Lúcifer é a Luz que brilha na escuridão, a Chama Negra que crepita nas Trevas;
a força logoidal que impulsiona a evolução humana, o Portador da Luz. É
interessante salientar nesse ponto que as origens do Reino da Lira encontram-se
na necessidade humana de evolução. Quando a consciência do homem se desenvolveu
ao ponto de filosofar e se civilizar, compor poemas, literaturas e magníficas
obras de arte, enfim, «criar» (ação logoidal), nasceu o Reino da Lira. A mente
e a natureza humana tateiam as escuras em dicotomia, pois junto ao impulso
luciférico de busca pela sabedoria, em igual medida existe a busca desenfreada
pelo cativeiro e escravidão dos sentidos apegados aos prazeres, vícios e
impulsos desmedidos (ignorância), forças representadas pelo Reino das Trevas.
Não vê aqui o Atu XV do Tarot, o Diabo? Sr. Sete da Lira na Quimbanda traz essa
força da busca órfica pela luz, que é a conquista da sabedoria sobre a
ignorância. Esse sincretismo ocorreu porque o Sr. Sete da Lira governa o Reino
da Lira, cujas emanações luciféricas são contínuas. Sua força ígnea é
terrivelmente visceral e ela se opõe a estagnação, a constrição, a escravidão e
a servidão, sejam culturais, sociais, religiosas e interpessoais. A fórmula
mágica do Reino da Lira é o retorno da obscuridade a luz pelo poder do êxtase,
da gnose e da catarse.
Nesse ponto podemos voltar a Pequena África, o
antro de capoeiras, cafajestes, pivetes e prostitutas que inspirou o Reino da
Lira e a famosa Falange dos Malandros.[1]
A inspiração para conformação do Reino da Lira
como o conhecemos hoje na Quimbanda está muito próxima de nós: a cultura que se
desenvolveu na Pequena África na região portuária do Rio de Janeiro, local onde
se aglomeravam africanos de muitas etnias e onde se estabeleceu muitos
negócios: bares, hotéis, cabarés, casas de apostas, tráfico de drogas,
terreiros e casas de religião, comércios de todo tipo etc., somado a muita
diversão, regozijo e deleite dos sentidos e prazeres; um antro de boêmios
capadócios (capoeiras malandros valentões e brigões) seresteiros, o «povo da
lira» como eram chamados. Eles se aglutinavam para cantar, dançar e tocar nas
ruas, fazer a segurança de personalidades políticas, prostíbulos, casas de
apostas e de religião. Eram também acusados de serem trapaceiros e de cometerem
crimes e jogatinas diversas. Com estes capoeiras, malandros cariocas, nasce a
inspiração arquetípica do Povo dos Malandros no Reino da Lira nos domínios da
Quimbanda.
No livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia,
uma abordagem completamente original sobre os Reinos da Quimbanda foi elaborada,
demonstrando a conexão existente entre os Reinos e as fases de desenvolvimento
do planeta e da consciência humana.