AS ORIGENS DA DEMONOLOGIA DE ALUÍZIO FONTENELLE

As origens da demonologia de Aluízio Fontenelle estão conectadas a antigos escritos judaicos apocalípticos que inauguraram a ideia de «anjos caídos» instruindo os homens os segredos da magia.

 

Por
Táta Nganga Kamuxinzela
 

@tatakamuxinzela
| @covadecipriano | @quimbandanago
 

 

Não
era o Anjo Belo um Querubim? O mais perfeito e mais belo de todos os Querubins?
Não eram os outros anjos (os que o seguiram) espíritos puros que, por isso
mesmo, viviam ao lado de Deus? Como Deus, não teria o Criador adivinhado seria
o termo adequado as intenções e antes disso, os próprios pensamentos do seu
escolhido Anjo Belo? Será que, em sã consciência, se poderá aceitar a ideia de
uma revolução no Céu? Na verdade, meus irmãos, a história é bem outra. Quanto a
ela, aliás, estou de acordo com o livro
Umbanda dos Pretos-Velhos,
quando no capítulo VII nos diz à página 72, o seguinte: «Para nós, portanto,
Diabo, Satanás, Capeta, Demônio, Exu, ou como se o quiser chamar, nada mais é
do que uma criação divina, necessária, indispensável e oportuna, lógica e
aceitável, justa, boa e perfeita, como todas as demais, divinas que o são,
divina que o é, ela também. Tudo tem o seu oposto, o seu avesso, o seu inverso,
o seu antagônico.»[1]

 

Em sua nova síntese da magia, a Quimbanda,
Aluízio Fontenelle (1913-1952) baseou-se na teodiceia clássica construída pelo
cristianismo católico acerca da queda dos anjos, de forma a elaborar uma
demonologia afro-brasileira conectada ao culto dos Exus e Pombagiras, que a
partir dali seria conhecido oficialmente como Quimbanda. Como vimos, a ponte ou
interface que possibilitou a conexão sincrética entre os Exus e os
demônios na síntese de Fontenelle foi o Grimorium Verum, um livro de
magia europeia diabólica e nigromântica do Séc. XVIII. E muito embora autores africanistas
modernos tenham alegações negativas acerca do trabalho de Fontenelle, todo o
seu desenvolvimento esteve alinhado com o zeitgeist que influenciou
Eliphas Levi (1810-1875), Papus (1865-1916), Saint-Yves d’Alveydre (1842-1909),
H.P. Blavatsky (1831-1891), Franz Anton Mesmer (1734–1815) e Allan Kardec
(1804-1869), todos conectados ao que se conveniou chamar de Ocultismo no
fim do Séc. XIX e cujas ideias fervilhavam no Brasil no início do Séc. XX.[2]
 

O problema é que muitos desses detratores atacam
Fontenelle com profunda desonestidade intelectual, alegando que sua síntese se
tratou de uma fantasia demonológica non sense. Este texto é uma resposta
a estes africanistas de olhos azuis.
 

A raiz da demonologia[3]
de Fontenelle, que está em harmonia com a própria natureza magística da
Quimbanda, como veremos, vem de uma literatura pseudoepigráfica do judaísmo
apocalíptico[4]
conhecida como O Livro de Enoch, uma coleção de textos escritos por
volta do Séc. III a.C. e que mencionam, pela primeira vez, a ideia teológica de
anjos caídos e que, posteriormente, foi reelaborada pelo cristianismo.
Essa literatura parece ter sido elaborada sobre a ideia apresentada no Gênesis
(6:2), que menciona os filhos de Deus tomando as filhas dos homens
como esposas.
 

Em O Livro de Enoch os filhos de Deus
foram interpretados como os Vigias (ou Sentinelas, Observadores),
uma classe de espíritos celestes que teriam se sentido atraídos sexualmente
pelas filhas dos homens: por tudo o que vimos, o mito da revolta dos
anjos tem um fundamento puramente sexual: o que eles ambicionam são as mais
belas mulheres da terra. O que os leva a perdição é […] a fornicação
.[5]
Posteriormente o motivo da queda dos anjos foi reelaborado de pecado sexual
para orgulho e inveja, porque era incongruente as crenças judaicas e cristãs a
possibilidade de anjos coabitarem com os humanos e dessa comunhão a existência
de uma prole. Mas O Livro de Enoch, no entanto, é bem sucedido em
introduzir a ideia de que os anjos poderiam desobedecer às ordens do Criador e,
partir disso, trazer consequências catastróficas a vida dos homens. O autor de O
Livro de Enoch
elabora que os gigantes (nephilin), a prole entre os Vigias
e as filhas dos homens, ao morrerem, tornavam-se maus espíritos,
sem nenhuma associação ou menção a palavra demônio.
 

É interessante que O Livro de Enoch
apresenta também a ideia – e daí uma associação com as funções do Exu e sua
relação com o kimbanda na Quimbanda – de que os Vigias ensinaram
as filhas dos homens a arte de diversos conhecimentos secretos,
como os segredos da magia, produzindo um dos protótipos mais antigos de listas
demonológicas, i.e. os espíritos e suas funções. A ideia de que espíritos
diversos podem instruir os homens na arte da magia é um dos arcanos fundantes
da arte mágica, e está em estreita conexão com a fórmula mágica do espírito
tutelar. Além disso, O Livro de Enoch também apresenta a ideia
fundamental do Anjo-Líder da desobediência, termo técnico para a queda
de uma hoste de anjos. A desobediência em O Livro de Enoch é um
conceito muito distante da ideia de revolta e confronto elaborada
pelo cristianismo na figura do Diabo. De todo modo, em O Livro de Enoch
é Samyaza o líder da rebelião, que foi confinado nas profundezas mais baixas do
fogo, para nunca mais atormentar a criação. Mas os nephilin, ou suas almas
sem descanso
, continuaram a atormentar os homens. Em outra elaboração do
período, O Livro dos Jubileus, obra também pseudoepigráfica, estes maus
espíritos
aparecem comandados por Mastema, que chega a convencer a Deus a
deixar uma parte desses espíritos sob o seu comando na Terra, tentando e
punindo os homens em acordo às leis divinas.[6]
É a partir deste núcleo literário, herdeiro das primeiras elaborações
teológicas dos judeus cativos na Babilônia, que todo o mito de Lúcifer/Diabo
foi construído pelo cristianismo.
 

Mastema veio a ser identificado com o Satã (ho-satan)
do Velho Testamento, e que aparece na Septuaginta dos judeus helenizados como Diabo (Cr. 21:1 e Sl. 109:6). É a partir da
demonologia que começou a se construir nesse período pelos primeiros cristãos
que no Novo Testamento o Diabo começa a ganhar sua elaboração final: uma
criatura de Deus que por vontade própria, orgulho, inveja e desobediência,
decidiu se tornar mau.
 

Justino Mártir (100-165 d.C.), influenciado pelo O
Livro de Enoch
, conecta os anjos caídos, suas hordas de demônios,
aos deuses greco-romanos e os meios pelos quais eles eram propiciados, como a
prática das oferendas votivas e sacrifícios de sangue. Nesse período inúmeros
filósofos gregos já haviam elaborado teses negativas sobre a natureza dos daimones:
Xenócrates (396-314 a.C.) fala do daimon maligno que possui
comportamento cruel e impuro, além de tecer críticas sobre o sacrifício animal.
Porfírio de Tiro (234-304 d.C.) retoma a crítica aos sacrifícios endereçados
aos daimones (e com isso muito inspira Santo Agostinho, 354-430 d.C.).
Plutarco (46-120 d.C.) também fala dos daimones malignos e como eles
provocam pestes e guerras, sendo apaziguados somente com sacrifícios. Diante
destes dois desenvolvimentos, a demonologia que derivava de O Livro de Enoch
e as ideias dos gregos acerca dos daimones malignos, por um lado Justino
conectou a associação estabelecida na Septuaginta entre os demônios
e os deuses estrangeiros ao mito dos anjos caídos de O Livro de Enoch;
por outro lado, ele conectou essas ideias as associações estabelecidas pelos
gregos entre os daimones malignos e as cerimônias de sacrifício a eles
endereçadas. Amarrando todas essas pontas, Justino começa a estabelecer
a demonologia ortodoxa do cristianismo católico. Inspirado em O Livro dos
Jubileus
e em partes do Novo Testamento, é ele atribui aos demônios
a chefia de Satã.
 

Mas é nas mãos de seu discípulo, no entanto, que o
mundo se tornou povoado por diabos. Tatiano o Assírio (120-180 d.C.)
negou a possibilidade dos demônios serem os gigantes mortos. Ao invés
disso, ele postulou que os próprios anjos caídos eram os demônios. A
partir dessa elaboração ele descreve um mundo dominado por demônios, que por
toda parte enganam os homens para que sejam adorados como deuses. Toda essa
construção será, posteriormente, retomada e refinada por Santo Agostinho.
 

Com o fim das perseguições aos cristãos em 313
d.C. e o estabelecimento do cristianismo como a religião oficial do Império
Romano em 380 d.C., as posições demonológicas da Igreja se consolidaram no
modelo que hoje conhecemos. É a partir desse período que iniciam as
perseguições aos pagãos: penas para quem cultuasse os antigos deuses, templos
destruídos, bibliotecas queimadas, tumbas vandalizadas, profanadas e pilhadas.
E com a destruição do Templo de Serapis em 391 d.C., o cristianismo gozava de
um ambiente de vitória. É nesse clima vitorioso que Santo Agostinho escreve seu
Sobre a Divinação dos Demônios,[7]
um texto sobre a natureza e as capacidades dos demônios, na intensão de
explicar o fundamento demonológico por trás dos cultos e oráculos pagãos. Em
outra obra, A Cidade de Deus, Santo Agostinho endereça 39 capítulos aos
demônios. Essas duas obras foram fundamentais na elaboração final da doutrina
que define os anjos caídos como demônios, preservando a ideia original
de O Livro de Enoch onde os anjos caídos, agora definitivamente diabos,
ensinaram os segredos da magia as filhas dos homens. E isso é de grande
importância no entendimento da demonologia de Aluízio Fontenelle.
 

Desde os desenvolvimentos demonológicos de
Agostinho, portanto, tudo o que envolve a prática e o aprendizado das artes da
magia só possível através dos demônios. São os demônios os agentes que
proliferam as artes mágicas entre os homens, e tudo isso com a permissão de
Deus. E é por causa disso que os primeiros escritos de magia a circularem no
período, em meio as perseguições e a censura do cristianismo, faziam uso desse
argumento: se os demônios já estão no Mundo com a autorização de Deus a
atormentar os homens, então basta ao convocador direcioná-los na intenção que
desejar. Bastava recorrer a Deus e aos anjos como fonte de poder e autoridade
para convocar e dar direção a força e potência dos demônios, algo que foi muito
bem definido em O Testamento de Salomão e de fundamental importância na
estruturação da Quimbanda: os Exus-Diabos, como agentes mágicos universais
disponíveis no Cosmos, poderiam ser convocados e direcionados pelos kimbandas
para todos os fins desejados por uma agência superior a eles, o Maioral da
Quimbanda na forma de três potências infernais.[8]
Exu «tanto pode fazer o bem quanto fazer o mal». […] No entendimento de
Fontenelle, entretanto, «fazer o mal» por si, a soldo ou motivado por
sentimentos como a inveja, cobiça, vingança etc., é o que caracteriza em
essência a Quimbanda, mais do que a seleção de espíritos que utiliza, já que
estes mesmos espíritos podem ser usados na Umbanda
.[9]
 

Esse mecanismo de recorrer a uma fonte
hierarquicamente superior de poder, como demonstrei com detalhes no livro Ganga:
a Quimbanda no Renascer da Magia
, está presente na demonologia do Grimorium
Verum
, onde três arquidemônios do inferno, Lúcifer, Beelzebuth e
Ashtraroth, comandam uma miríade de diabos inferiores na hierarquia.
Através do poder destes três Demônios Chefes, a Trindade Infernal, é
possível ao operador convocar uma horda de diabos tutelares, e com eles
estabelecer pactos.
 

Essa estrutura do Grimorium Verum, aliada
as ideias correntes do cristianismo acerca dos demônios como anjos caídos
que ensinaram aos homens os segredos da magia, bem como as ideias do Ocultismo
francês do fim do Séc. XIX que fervilhavam no Brasil, foram os ingredientes que
levaram Fontenelle a construir sua nova síntese da magia. Assim como em O
Livro de Enoch
e nas elaborações cristãs posteriores, os Exus-Diabos são
fonte de conhecimento de magia na Quimbanda; são a própria fonte do poder para
transformação da Natureza. Toda demonologia desenvolvida por Fontenelle para
Quimbanda baseou-se na potência e atividade dos Exus-Diabos para
manipulação do tecido da realidade. Por esse motivo o Chefe Império Maioral, o
Diabo, é a fonte de todo o poder mágico da Quimbanda:
 

O
Diabo representa o poder da vida, o poder da terra, o poder do ser, o poder da
criação, o poder do alimento, o poder do sexo, o poder de ser você mesmo. E
isso assusta todos que não estão preparados para serem livres.

Quando dizem que a Quimbanda é um culto ao Diabo, não estão de todo
errados, porém a conotação em que isso é dito que diferencia o real do ofensivo.
O culto ao Diabo é a manifestação do culto a vida, onde tudo é sagrado e nada é
profano. O Culto onde não temos medo dos nossos desejos, dos nossos ímpetos,
dos nossos prazeres, mas o colocamos em contato direto em nossa alma para que tudo
seja uno.

Então, faz muito sentido que o Diabo acabe fomentando tanto o imaginário
das pessoas, pois todos estão ligados a ele enquanto estamos encarnados, pois
vivemos no seu mundo, em seus domínios e dependemos deste domínio para existir.[10]



[1] Antônio de Alva. O
Livro dos Exus, Kiumbas e Eguns
. Editora Eco, 8ª edição, pp. 21.

[2] Dissertando sobre as
influências que inspiraram as elaborações de Fontenelle acerca do Chefe Império
Maioral, Humberto Maggi diz: Dada a grande influência que a cultura francesa
teve no Brasil nesse período, e também nas primeiras décadas do século XX, é bem
possível que venha daí a ideia apresentada por Fontenelle
. Huberto Maggi. O
Diabo
. Clube de Autores, 2022, pp. 201. Veja a discussão sobre Quimbanda e Ocultismo
na Parte III do
Daemonium (Vol. III), no prelo.

[3] A maior parte da fonte de
pesquisa demonológica para este ensaio está em Huberto Maggi. Thesaurus
Magicus
, Vol. III. Clube de Autores, 2015, pp. lxxviii-cv.

[4] O gênero literário que
ficou conhecido como apocalíptico trata-se de textos revelatórios, cuja a
narrativa apresenta a revelação na forma de jornadas visionárias e ascensão
celestial, acompanhadas de discursos ou diálogos. Geralmente um anjo se ocupa
como guia e interprete das visões. O indivíduo bem-aventurado cuja revelação se
apresenta é sempre um personagem de prestígio de um passado distante, cujo nome
é na maioria das vezes usado como pseudônimo. O objetivo da revelação é único:
descortinar os mistérios sobrenaturais do Céu. Esse tipo de literatura
influenciou profundamente a gênese do cristianismo.

[5] Fernando G. Sampaio. A
História do Demônio: da antiguidade aos dias atuais
. Editora Garatuja,
1976, pp. 15.

[6] É interessante notar nesse
ponto a estreita conexão com a síntese elaborada por Fontenelle, onde o
Diabo, Maioral, pode estar sob hierarquias superiores. Veja abaixo.

[7] Disponível em português na
obra de Huberto Maggi. Thesaurus Magicus, Vol. III. Clube de Autores,
2015, pp. 51.

[8] Veja o artigo Daemonium:
A Hierarquia Infernal da Quimbanda
, Seções II e III. Revista Nganga,
No. 11.

[9] Huberto Maggi. O Diabo.
Clube de Autores, 2022, pp. 196-7.

[10] De um escrito inédito de
Táta Zelawapanzu que aparecerá na Revista Nganga.