A CABALÁ FRANCESA
Por Táta Nganga
Kamuxinzela
@tatakamuxinzela |
@covadecipriano | @quimbandanago
Nota: este texto é um excerto do Capítulo 14 do terceiro volume do Daemonium: a Quimbanda & a Nova Síntesze da Magia, em breve disponível.
Na Quimbanda Mussurumin
existe uma linha de trabalho exclusiva,
somente a iniciados, conhecida como Cabalá
Francesa (às vezes também chamada
de Cabalá Europeia). Pelo termo linha de trabalho, entenda como um ramo ou braço paralelo ao
trabalho central com os Exus e Pombagiras, quer dizer, separado, mas que faz parte do escopo total da banda. Essa linha
de trabalho da Quimbanda Mussurumin está completamente alinhada a nova
síntese da magia e aos interesses do grimoire revival, temas sobre
os quais venho me debruçando desde o segundo volume do Daemonium.
A Cabalá Francesa
na Quimbanda Mussurumin consiste no trabalho prático com a magia
cerimonial em seus diversos sistemas, antigos ou modernos, derivados dos
grimórios ou de escolas de iniciação, adaptados ao sistema prático de macumba
da Quimbanda, a gosto do operador. Esse é um trabalho particular da Quimbanda
Mussurumin, que diferente das vertentes tradicionais Nàgô e Malê,
não sincretiza demônios diretamente com os Exus. Todo o trabalho com esses demônios
e outros espíritos (anjos cabalísticos ou enoquianos, espíritos olímpicos, genii-loci
encantados ou mortos diversos etc.), no contexto da magia cerimonial europeia
de modo geral, é executado a parte, fora dos rituais tradicionais de atuação
dos Exus e Pombagiras (giras, toques e orôs). Para tal fim
são construídos dois templos ou duas áreas ritualísticas distintas dentro de um
mesmo templo, uma destinada aos rituais tradicionais da Quimbanda, outra para
realização das cerimônias de Cabalá Francesa.
Diferente das vertentes Nàgô
e Malê, a Cabalá Francesa na Quimbanda
Mussurumin utiliza as regalias tradicionais da magia cerimonial (robe,
círculo mágico, baqueta, triângulo, reis nos quadrantes etc.) e respeita seus
princípios segundo o conhecimento da Arte que possui o operador. Mas muito
embora o templo ou a área ritualística de magia cerimonial seja construído a
parte daquela onde se realizam as operações magísticas da Quimbanda, o Exu-Táta
do templo permanece o patrono do trabalho de Cabalá Francesa. No Templo
Maioral Exu Pantera Negra e Pombagira Dama da Noite da família Cova de
Cipriano Feiticeiro, a Cabalá
Francesa foca na Ciência (conhecimento) e Arte (técnica) da magia com
inteligências terrestres (i.e. sublunares) da tradição
salomônica-cipriânico-fáustica da goécia, quer dizer, todo o trabalho se
concentra em espíritos ctônicos, telúricos e aéreos que na literatura
tradicional dos grimórios são chamados na grande maioria das vezes de demônios e
que, como vimos no Capítulo 12, são antigas deidades pagãs. A regência deste
trabalho é de Exu Pantera Negra, que fornece instruções para estrutura do
templo, tecnologias mágicas utilizadas (círculo, armas, pantáculos etc. quando
necessários), e a construção das moradas de poder dos espíritos. Em outras
palavras, as inteligências terrestres ganham corpo físico por meio das
tecnologias mágicas da Quimbanda para este trabalho. As implicações práticas
desse tipo de abordagem magística com esses espíritos é de uma envergadura
taumatúrgica para muito além da experiência ordinária experienciada pelos
magistas cerimoniais médios. Estes demônios tornam-se diabos pessoais
dos Gangas da Quimbanda. Muito diferente da abordagem moderna de convocar esses
espíritos em folha de papel sulfite, eles são literalmente assentados,
ganhando corpo físico, porque é uma crença antiga na tradição da magia que para
exercerem total influência mágica na vida dos operadores, os espíritos têm de
ter corpo físico.
Como delineei no Capítulo 7, a prática da individualização
do Exu trará uma inteligência terrestre para servir de espírito
assistente (servidor, capataz) no Reinado do Exu-Táta do
templo. Na prática, neste trabalho exclusivo de Exu Pantera Negra, trata-se da
vinculação do poder de uma inteligência terrestre do sistema do Grimorium Verum
ao trabalho do Exu, para agregar força e potência. Então diferente das
vertentes tradicionais Nàgô e Malê, não ocorre um sincretismo,
mas a convocação de uma inteligência terrestre para atuar junto do Exu-Táta em
seus trabalhos, sob sua autoridade direta. Veja que isso está alinhado a
fórmula mágica universal do espírito tutelar presente em muitos sistemas, como
da magia salomônica tradicional de O Testamento de Salomão, datado dos
Sécs. II-III d.C., ou a magia sagrada do Livro de Abramelin, de 1387.
Não é uma
obrigatoriedade que o templo ou a área destinada as cerimônias de magia
cerimonial, permanentes ou temporárias, necessitem de absolutamente todas as
regalias tradicionalmente exigidas para realização dos rituais conforme as
orientações gerais dos grimórios. Isso significa que o uso do círculo mágico,
triângulo da arte, robes e insígnias,
correspondências e signos astrais, quadrantes nas direções do espaço etc. está
sujeito ao gosto e conhecimento do operador, e as instruções do Exu-Táta do
templo. O requerimento tradicional no contexto da Quimbanda Mussurumin é
apenas que os rituais da Quimbanda não sejam misturados com àqueles da Cabalá
Francesa. A nova síntese da magia consiste em dissolver a difícil e
intricada operacionalidade dos rituais de magia cerimonial, substituindo-as
pelos métodos da cabalá crioula ou de suas variantes na diáspora
africana nas Américas. Para tal, o operador é livre para adaptar como quer,
assim como formular o sistema que desejar, para colocar em prática a Cabalá
Francesa. Aqui no Templo Maioral Exu Pantera Negra e Pombagira Dama da
Noite, o sistema e teologia para Cabalá Francesa envolve apenas as
inteligências terrestres do orbe sublunar. E este será o caminho que iremos
tomar nesse capítulo de apontamentos práticos que poderão inspirar ou poderão
ser adaptados na prática ritual, a gosto do operador. Mas é possível adaptá-los
a qualquer sistema, como do Arbatel e seus espíritos olímpicos,
de 1559.
Como temos estudado desde o segundo volume do Daemonium
e do Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, o Grimorium Verum dissolveu
as difíceis e intricadas instruções dos grimórios salomônicos que o precederam,
e restaurou as antigas técnicas pagãs de comunicação com os espíritos como
sacrifícios e oferendas, presentes no Hygromanteia ou Tratado Mágico
de Salomão, de 1440. Além disso, como temos explorado por esses três
volumes, o sistema de magia do Grimorium Verum influenciou profundamente
a mecânica de culto na Quimbanda, unindo as duas correntes ctônicas – a do
grimório e a da Quimbanda – em uma só na síntese de Fontenelle. Por
esse motivo, esse capítulo se concentrará em oferecer um pequeno conjunto
de ferramentas e apontamentos que possam introduzir elementos
práticos na ritualística dos admiradores da Quimbanda e de outros magistas
interessados em trabalhar com o Grimorium Verum no estilo da
Quimbanda. A Cabalá Francesa na Quimbanda Mussurumin não se
limita a operações com inteligências terrestres do orbe sublunar. Mas para o
trabalho aqui apresentado, sob a tutela e comando de Exu Pantera Negra, esses
serão os espíritos explorados. Nossa intenção é mergulhar profundamente no
grande abismo da terra desta goécia infernal e diabólica que vivifica tanto a
Quimbanda quanto o Grimorium Verum.
Isso significa incluir as inteligências
terrestres em inúmeros feitiços da Quimbanda, assimilando-os não apenas na
perspectiva prática da magia, mas também na perspectiva mítica. Por causa disso
incluímos no Capítulo 15 uma lista dos diabos do Grimorium Verum como associados aos Exus na síntese estabelecida
por Fontenelle. A lista incluirá uma breve descrição das inteligências
terrestres e dos Gangas associados a estes espíritos.
A Importante distinção entre a maneira de se
operar descrita aqui e a forma cerimonial tradicional que a goécia a partir dos grimórios normalmente assume, é que a ênfase desse estilo de trabalho, que constitui a nova síntese da magia, é estabelecida a partir do sistema mágico da
Quimbanda. Em
outras palavras, ao padrão ritual estabelecido pela Quimbanda é infundida a
corrente mágica da goécia noturna do Grimorium Verum. As
assinaturas mágicas (pontos riscados) dos Gangas serão associadas
diretamente as assinaturas mágicas (selos cabalísticos) das
inteligências terrestres em pergaminhos ou metais preparados com condensadores
fluídicos, pedras, gemas ou pembas, a depender da operação.
Uma vez que a inteligência
terrestre convocada se torna um diabo pessoal sob a autoridade do
Exu-Táta, um servidor do operador, não se faz necessário, via de regra,
tecnologias como o círculo mágico e o triângulo da arte, bem como será
dispensado qualquer tipo de comunicação ofensiva ou coerciva com os espíritos.
O operador deverá ter uma abordagem prática da perspectiva ancestral, i.e. as
inteligências terrestres, astrais, celestes, os espíritos dos decanatos e as
mansões lunares etc., todos são considerados espíritos ancestrais do
operador, que se vê, em meio a operação, dentro de um círculo familiar de
dimensões cósmicas. É quando o círculo mágico dissolve suas bordas e deixa de
ser uma divisão entre o operador e o círculo de ancestrais cósmicos na
pluralidade das formas. O que foi romanticamente citado por Frater Archer, como
vimos na Apresentação deste volume:
Como
ficou claro até aqui, a goécia como estilo de vida daemônico está
diretamente conectada a fórmula mágica do espírito tutelar na forma de uma alma
que desceu aos Infernos (catábase) e ascendeu (anábase)
glorificada das profundezas do Submundo, e que muitas vezes é representada
miticamente por um herói, como São Cipriano, Salomão ou Fausto.
Os heróis da goécia brasileira são os Gangas da Quimbanda, espíritos com
os quais mantemos laços ancestrais estreitos. A fórmula mágica do
espírito tutelar, portanto, exigirá que o operador estabeleça uma relação
familiar com o diabo pessoal. Para tal, a abordagem
mágico-pedagógica deste livro consiste de quatro passos técnicos fundamentais
para o conhecimento e conversação com o espírito tutelar: i. estabelecer
uma comunicação adequada; ii. feitio apropriado das oferendas e sacrifícios;
iii. a construção do corpo físico do espírito; iv. operar a magia segundo
a natureza peculiar do espírito, que na Quimbanda chamamos de conhecer e
operar com a linha de trabalho do Ganga cultuado.[2]
E insiro essa palavra, cultuado, em um sentido técnico: a atitude para
com todos os espíritos aqui listados é devocional, não imprecatória. Em certa
ocasião, recebendo instruções do Exu Sete Catacumbas, ele me falou: esses
espíritos dos grimórios da magia que vem da Europa são divindade esquecidas, e
que não gostam de serem tratadas com grosseria e ameaças. Basta tratar eles com
educação e pagar-lhes os tributos que solicitam e pronto, deixa acontecer, que
você vai ver seu Exu carregado com muito mais poder e força. O espírito
dessa sabedoria de Exu Sete Catacumbas vivifica o espírito deste livro. Jake
Stratton-Kent diz:
O
trabalho mágico [que] diz respeito aos processos da goécia envolve um forte
aspecto devocional enquanto se lida com espíritos da terra e do Submundo. […]
A abordagem aos espíritos difere da demonologia medieval e dos derivados
posteriores. A palavra grega antiga goeteia é entendida de maneiras
diferentes nos tempos modernos. Alguns refletem seu status desvalorizado na
cultura clássica e medieval, outros a importância exagerada da Goécia de
Salomão [tradicional], ambos criando uma impressão estereotipada de
verdadeira e real goécia. Em essência, no entanto, a goécia de raiz arcaica tem
uma grande quantidade de [influência no] trabalho espiritual na magia
ocidental, e é o ancestral principal e venerável da magia ritual moderna.
Na antiguidade clássica, o termo goécia geralmente se referia a rituais
de uma fase mais arcaica da cultura, ou práticas que as refletissem. Lidou
particularmente com os espíritos do submundo ou da terra, em oposição às
divindades e entidades celestiais ou urânicas. Estes [espíritos terrestres]
variaram de fantasmas e demônios a divindades como Deméter, Hades e Perséfone.
Minha compreensão de tal trabalho compartilha com muitas religiões tradicionais
africanas a ideia de que Deus é uma figura remota e inacessível, em grande
parte despreocupada com o universo material. Em graus variados, o mesmo se
aplica a outros seres celestes. Os espíritos ctônicos, por outro lado, são
acessíveis, e relações mágicas práticas podem ser facilmente formadas com eles
[por meio de elos mágicos], onde esses relacionamentos são de longo prazo e um
relacionamento definido é formado. Manter esse relacionamento envolve
atividades de culto por parte do magista, como fazer oferendas regularmente.
Isso é adoração? Responder a isso envolve um simples exercício de
semântica. É significativo que, no casamento cristão, a frase com o meu
corpo que eu cultuo seja usada de parceiro para parceiro. Se examinarmos a
palavra, encontramos que adoração deriva da mesma raiz que valor, dignidade etc.
Portanto, se desejamos usar a palavra adoração, deve ser entendido que ela
representa o reconhecimento da parceria dos espíritos com o magista e não
diminui o magista em relação a eles.[3]
A nova síntese da magia parte de uma
premissa fundamental: para revitalizar qualquer aspecto da magia cerimonial
ocidental o operador deve mergulhar profundamente nas raízes ancestrais da
goécia como tradição viva e fonte primeva dos alicerces mágicos e
religiosos da magia no Ocidente. E para fazê-lo, ele precisa encontrar o
caminho por si mesmo. A Quimbanda oferece um acesso a essas raízes, preservadas
e atualizadas.
Na prática, o trabalho poderá incluir a confecção
de patuás, o uso de óleos e pós, efígies, lanternas mágicas (amuletos,
pantacléias, talismãs, garrafas etc.) tradicionais da Quimbanda, carregados com
a força mágica de uma inteligência terrestre do Grimorium Verum a partir do poder e
autoridade do Exu-Táta do kimbanda. Daí a importância de se possuir de
fato o fundamento da Quimbanda, como veremos na seção que segue, para
incluir a Cabalá Francesa no arranjo de técnicas magísticas possuídas
pelo kimbanda.
No contexto da nova síntese da magia, um
adicional importante: as inteligências terrestres comem absolutamente tudo que
os Gangas da Quimbanda comem. Toda a culinária da Quimbanda, que em si
constitui um sistema de magia como veremos ainda neste capítulo, também é
associada as inteligências terrestres.
[1] Frater
Archer em sua resenha: The Testament of Cyprian the Mage,
disponível na internet.
[2] Neste
livro, no entanto, não nos debruçaremos profundamente sobre alguns desses
pontos, por causa do segredo de culto.
[3] Jake
Stratton-Kent. Geosophia. Vol. 2. Scarlet Imprint, 2023, pp. 215-6.