A LIBERDADE DO KIMBANDA
Por
Táta Nganga Kilumbu
@quimbandamarabo
| @tatakilumbu
Nos dias de hoje a
Quimbanda atrai muitos olhares e estes despertam interesses, seja por causa do
diabolismo iconográfico, pelo estilo de vida de magia e comunicação com os
espíritos, pela amoralidade do culto e sua abertura e acesso a todas as classes
sociais como iguais, pelas práticas antinomianas como os sacrifícios, ou pela
busca da deificação da alma e amor pela mística e teologia dos Gangas da
Quimbanda. Por outro lado, existem alguns bordões que nós, táta-ngangas
zeladores do culto, proferimos e que reforçam e despertam mais desejo e
interesse pela Quimbanda, como: i. a Quimbanda soma; ii. a Quimbanda
provê independência e liberdade magística.
Esses bordões são, no entanto, compreendidos efetivamente com profundidade apenas
por iniciados nos mistérios e segredos da Quimbanda. Muito embora sejam
tentadores àqueles não iniciados que desejam adentrar a Quimbanda, para estes,
no tento, esses bordões podem ser um convite a queda. Um dos bordões mais mal
compreendidos da Quimbanda é este: iii. Quimbanda é liberdade. Aqueles
que não compreendem o que este bordão significa, costumam tomar a palavra liberdade
por libertinagem. Quando essa confusão ocorre, toda cadeia de
transmissão da corrente mágica da Quimbanda pode ser comprometida, seja em
níveis pessoais ou coletivos em uma casa ou vertente, podendo,
não raras vezes, comprometer a funcionalidade de toda uma família de Quimbanda.
Hoje vamos nos debruçar sobre esse tema importante.
O Dicionário Priberam
da Língua Portuguesa define liberdade como: i. Direito de um indivíduo
proceder conforme lhe pareça, desde que esse direito não vá contra o direito de
outrem e esteja dentro dos limites da lei; ii. Maneira de falar ou de
agir sem tentar esconder sentimentos ou intenções; iii. Capacidade de
agir sem receio ou sem constrangimento. Esse entendimento de nível
linguístico é deveras importante para se compreender a liberdade dentro do
culto de Quimbanda e para com seus adeptos, de modo que não venham a se perder
no caminho com uma compreensão equivocada e que lhes cause prejuízos; afinal, o
ponto já diz que com Exu não se brinca, pois ele não é de brincadeira.
Tomando por base a
explicação do dicionário, vamos compreender que quando falamos da liberdade do kimbanda,
ou seja, do adepto, estamos falando que dentro da Quimbanda ele aprende a se
libertar dos dogmas do cristianismo, do embranquecimento das religiões-afro,
podendo se apegar novamente às práticas dos seus ancestrais africanos kimbandas,
ngangas e embandas, os quais deixaram seu legado dentro das muitas
tradições da Macumba. Práticas e crenças estas que durante a formação da Umbanda
Branca são expurgadas da Macumba, porém são abraçadas e continuadas pela
Quimbanda. Nesse ponto que surge todo o contexto histórico que Marco Aurélio
Luz e Georges Lapassades interpretaram como sendo um movimento de
contra-cultura pelo fato de não se enquadrar nos princípios do kardecismo embranquecedor
da nascente Umbanda, e onde a Quimbanda continua no firme propósito de
manter as antigas tradições de seus descendentes africanos, ao passo que a
Umbanda pelo contrário, procura se afastar completamente, parafraseando
Aluízio Fontenele em O Espiritismo no Conceito das Religiões e a Lei de Umbanda.
Portanto, diante da
sociedade da época, de maioria cristã, com fortes sanções e perseguições às
outras práticas religiosas, se manter afastado da moralidade cristã e de seus
dogmas, seja pela via tradicional do catolicismo ou pela não-convencional, mas
ainda sim de base cristã, como o espiritismo de Kardec, era de fato algo que
poderia ser considerado contra-cultura; pois a cultura dominante pregava os
dogmas do cristianismo e atacava a diversidade religiosa e filosófica presentes
na população e cultura brasileira.
E pelo fato do kimbanda
dar de costas os medos impostos pela Cristandade, como não ocorre na Umbanda,
os mesmos foram cada vez mais associados às práticas de magia negra ou baixa
magia; em outros termos, eles foram associados à toda sorte de magias
negativas, afinal, a realização plena do indivíduo dentro da Quimbanda é
objetivo do culto, enquanto sob os auspícios dos dogmas cristãos o objetivo é sempre
o próximo. Logo, se alguém faz algo que por algum motivo o kimbanda
acha justo atacar magicamente, ele o fará sem medo e sem temor de arder no fogo
do inferno, pois não está debaixo destas leis impositivas pela
sociedade, pois sabe que não são reais e alinhadas ao pensamento de seus
ancestrais bantos. Por isso Fontenelle escreve:
A
magia branca combate a magia negra, isto é: a Umbanda combate a Quimbanda. E
por todos é sabido que a Quimbanda teve o seu princípio no Brasil com o advento
da escravatura, pois, os antigos colonizadores portugueses, trazendo das suas
possessões na África, os escravos negros, estes traziam dentro do seu coração,
a mágoa, o ódio e o rancor pelos homens de raça branca que os escravizavam; e
assim, procuravam por todos os meios, trabalhar com entidades diabólicas,
contra os seus senhores.
Em outras palavras, a
liberdade quando se fala da Quimbanda para com seus adeptos, em primeiro lugar,
trata-se da liberdade de crença e expressão, que não precisam estar alinhadas
aos dogmas do cristianismo, nem de forma indireta, pelo contrário, poderão ser
até mesmo opostos, mesmo assim estará tudo bem, pois o Cristo só é importante
para os seguidores dele; o que importa para o kimbanda é o seu
Ancestral, o seu Exu tutelar, o seu Kizombeiro, enfim, seus deuses
ancestrais. A liberdade proporciona a abertura de um leque amplo para ação e
reação mágica, pois seus dogmas serão outros que não os da sociedade ocidental judaico-cristã.
E isso implica até mesmo ao culto dos Exus, pois como na Quimbanda se preserva
as práticas e crença dos ancestrais, não há de se falar de dogmas kardecistas por
cima dos Mestres Exu e Pombagira.
Em segundo lugar, uma vez
que a Quimbanda provê essa liberdade de ampla expressão magística, o kimbanda
necessitará de disciplina diligente para direcionar seus esforços por um
caminho de crescimento e progresso. Liberdade sem disciplina é libertinagem.
Liberdade só é liberdade quando compreendida como disciplina. Isso quer dizer
que a liberdade, na Quimbanda, não significa uma autorização para que você,
assim que iniciado, faça qualquer coisa que te der na telha no contexto do
culto. A Quimbanda é um sistema e como tal, possui uma métrica de
desenvolvimento gradual, que leva um aspirante (noviço) a tornar-se um mestre
(táta-nganga). Cada vertente ou família estabelece diretrizes básicas a
serem rigorosamente seguidas dentro de um curso definido de desenvolvimento
mediúnico e magístico. Entenda que Exu e a Quimbanda são livres, mas têm
regras, têm preceitos e fundamentos; não se trata da casa da mãe joana onde
qualquer um faz o que se bem entende, inclusive com as próprias práticas da família
onde está inserido.