UMBANDA & QUIMBANDA: COMPLEMENTOS OU OPOSTOS?

O texto desmistifica a ideia equivocada de que a Quimbanda é apenas a «esquerda da Umbanda», esclarecendo que se trata de tradições distintas, com ritualísticas e fundamentos próprios. Enquanto a Umbanda trabalha com Exus e Pombagiras como espíritos ancestrais divinizados...



Por
Táta Nganga Kilumbu

@quimbandamarabo
/ @tatakilumbu / @kimbandamarabo.oficial
 

 

Existe uma falácia antiga dos praticantes de
Umbanda que tentam colocar sob seu domínio o culto da Quimbanda, falando e
fazendo crer que a Quimbanda é a esquerda da Umbanda, e uma não existe
uma sem a outra. Isso é mito! Essa confusão se deu pelo fato de muitos candomblecistas
e umbandistas tocarem seus cultos de Exu como Quimbanda; logo, os praticantes
sem muitas informações, associam a Quimbanda como parte complementar dos outros
dois cultos. O Candomblé só começa a assimilar o culto de Exu como tal,
nomeando-o de Quimbanda, muito depois desta já estar estabelecida como
tradição, embora haja relatos de assentamento de Exu por volta de 1936 nos
Candomblés.[1]
 

Entretanto, a esquerda da Umbanda, onde são
cultuados os Exus e Pombagiras, não são os mesmos espíritos do panteão da
Quimbanda, afinal, a esquerda da Umbanda cultua e lida apenas com Exus e
Pombagiras como espíritos ancestrais divinizados, e muito embora estes espíritos
também estejam dentro do panteão da Quimbanda, esta cultua e lida com espíritos
ancestrais diversos e, além destes, espíritos de outras naturezas, como encantados
ou elementais, espíritos servidores e demônios, o que não encontramos
na Umbanda.
 

A Quimbanda é uma cultura demonológica brasileira.[2]
A vertente mais demonológica é a Quimbanda Malê. Nessa vertente há uma
insidiosa influência da magia salomônica árabe, onde os Gangas assentados são,
em verdade, djinns e que, na recessão cristã da magia salomônica, foram
chamados de demônios.[3]
Como temos demonstrado em nossa literatura,[4]
Exu no imaginário da cultura brasileira é diabo, por inúmeros fatores congruentes
decorrentes da profunda miscigenação dos saberes ancestrais europeus, africanos
e ameríndios. No livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia de Táta
Kamuxinzela, foi demonstrado como a Umbanda, na tentativa de se tornar uma
religião aceita pela alta sociedade brasileira na época em que a capital do
país era o Rio de Janeiro, expurgou quase todos os elementos animistas e
fetichistas da cultura africana dos rituais da antiga Macumba, que hoje
nomeamos como Quimbanda, embranquecendo o culto. Nesse processo de
embranquecimento, houve uma comoção para desassociar a imagem de Exu do Diabo.
Então são os Exus da Umbanda, doravante necessariamente batizados dentro
da Lei de Umbanda – mantenedora da ordem colonialista – apresentados como guardiões
e um sem número distinto de caracterizações modernas ao estilo religião nova
era
. Nasce então a linha de trabalho dos Exus batizados da Umbanda. Lapassade
e Luz comentam
 

E é por isso que nos disse
Exu-Mangueira, «a umbanda é a servidão, para nós a quimbanda é a liberdade».
[…] A quimbanda é ao contrário o ritual que deseja libertar os homens.[5]

 

Fica claro, portanto, que Umbanda e Quimbanda tratam
de ritualísticas distintas e não adianta tentar associá-las como se fossem uma
coisa só ou aspectos distintos de uma coisa só, como os dois lados de uma mesma
moeda, pois haverá sem sombra de dúvidas atritos e perda de força mágica (moyo).
Quando associadas e mantidas independentes, o que ocorre efetivamente é a
restauração da Macumba.
 

Alguns sacerdotes proclamam que a principal forma
de diferenciar Umbanda de Quimbanda se dá pelo uso da sacralização de animais
nos fetiches sagrados. Ledo engano. As coisas não são tão simples assim. Como
diz o ditado, há mais entre o céu e a terra… Em seu caminho de
embranquecimento, a Umbanda expurgou não só o sacrifício de animais, mas muitas
outras ferramentas mágicas como o uso de oráculos. Logo, o argumento falha em
distinguir Umbanda e Quimbanda. Existem vertentes de Umbanda que sacralizam
animais para Caboclos e Pretos Velhos, logo também o fazem para seus Exus e
Pombagiras, e isso não faz seu culto de Esquerda se tornar Quimbanda.
 

A principal forma de entender Quimbanda é assim:
trata-se de um culto centrado exclusivamente no trabalho com os Gangas, i.e. os
Exus e Pombagiras. Como o cerne da Umbanda é o culto aos falangeiros de òrìṣà,
Caboclos e Pretos Velhos – e não a Exu –, logo não se trata de Quimbanda.
Afinal, Exu é tão abrangente que se manifesta, além da Quimbanda, em Candomblé
de Caboclo, Umbanda, Catimbó, Jurema, Tambor de Mina, Tereco, outros cultos e
doutrinas como xamanismo urbano, Santo Daime etc.
 

Apesar de haver uma tentativa antiga de criar
paralelo entre as Sete Linhas de Umbanda com as Linhas mais
Antigas da Quimbanda, não existe esta relação efetivamente; aquele que nisso
acredita, deve acreditar que seu culto é subalterno da Umbanda, e se não crer
nisso, logo, deverá rever seus conceitos e estudar mais um pouco, pois desde
que os movimentos afro-religiosos passaram a ser documentados em jornais e
acadêmicamente, se entende facilmente a separação ou distinção entre Umbanda e
Quimbanda, como aponta Lourenço Braga, Georges Lapassade e Marco Aurélio Luz;
estes últimos principalmente, pois compreendem e trazem à literatura a
existência de ambas as práticas dentro de um mesmo recinto, porém sem misturar
os cultos Umbanda e Quimbanda, que muitas vezes é escondida embaixo da toalha
da Umbanda
, como forma de preservação, pois era um tabu em seu tempo.
Afinal, a Quimbanda é fruto da contracultura, da marginalidade, vejamos:
 

Às vezes o centro, ou Templo Umbandista, só
trabalha uma vez por mês com os Exus. Quando um centro dá muita importância aos
Exus, mas trabalha também com outras entidades, diz-se que é um centro de
umbanda «traçada» ou cruzada; um centro de quimbanda. Na quimbanda pura
trabalha-se exclusivamente com Exus e para fazer o mal, como se diz (magia
negra), enquanto na umbanda se trabalharia para o bem (magia branca). A
quimbanda é menos conhecida que a Umbanda. Ela nem chega a ser nomeada
oficialmente. Existem, e eu vi, Federações Umbandistas, não existe Federação
Quimbandista. Isto chama atenção: a quimbanda é um assunto tabu. Existe, mas
como que dissimulada atrás da umbanda. Quero indicar imediatamente minha
hipótese em torno da quimbanda: ela é o retorno do reprimido. A quimbanda é o
culto dos Exus.
[6]

 

Veremos principalmente na tipificação de espíritos
os quais atribuem-se o título espiritual de Exu e/ou Pombagira na Umbanda para
a Quimbanda. Os Espíritos da Esquerda de Umbanda se postam como forças
espirituais que estão para resgate cármico em relação ao seu médium,
seja de resgate pessoal ou do médium, logo são considerados espíritos errantes
que ganharam forças para poder se elevar do Umbral (visão kardecista
forte nos dias atuais na Umbanda) para partes elevadas da consciência, dentro
de sua visão. Assim, um espírito de um assassino voltaria como um Exu para se endiereitar
com o Universo e se elevar a níveis superiores.
 

Essa teoria umbandista-kardecista não existe na
Quimbanda. A Quimbanda nem opera com a ideia de karma como a Umbanda
herdo do Espiritismo. Em outras palavras, a Quimbanda não está presa à esta
falácia dogmática abraçada por Zélio de Moraes, o Primado de Umbanda e seus
seguidores umbadistas. Não vemos o cargo espiritual de Exu e Pombagira como
espécie alguma de Penalidade Astral, e muito menos como espíritos involuídos,
sejam se sua última passagem encarnatória sobre a terra tivesse sido um assassino
feroz, afinal, a Quimbanda vem rasgar o véu de māyā”, vem desnudar a
realidade, mostrando que mesmo nas sombras há luminosidade. Se existe a Luz
branca, existe a Luz Negra, e no fim, ambas pontas se tocam, e quem conhece o
lado mais perverso, conhece a verdadeira realidade escondida debaixo das
revoltas e ódio de aeons de ilusões.


Esse texto é um excerto do livro em breve disponínel: O Livro dos Gangas da Quimbanda Nàgô:



NOTAS:

[1] Veja Umberto Maggi. Encruzilhada &
cemitérios: Uma Introdução Histórica à Quimbanda
. Clube de Autores, 2024.
Para uma abordagem histórica acerca do surgimento das vertentes de Quimbanda,
também veja Fernando Liguori. Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia.
Clube de Autores, 2023.

[2] Veja Fernando Liguori. Daemonium: a Quimbanda
& a Nova Síntese da Magia
. Clube de Autores, 2024.

[3] Veja Fernando Liguori. Ganga: a Quimbanda no
Renascer da Magia
. Clube de Autores, 2023. Do mesmo autor veja o
artigo Asmodeus na Quimbanda Malê, disponível no site
www.quimbandanago.com.

[4] Livros e artigos produzidos por nossa banda.

[5] Marco Aurélio Luz e Georges Lapassade. O Segredo
da Macumba
. Paz e Terra, 1972.

[6] Marco Aurélio Luz e Georges Lapassade. O Segredo
da Macumba
. Paz e Terra, 1972.