A TRINDADE INFERNAL: SATANÁS, CAIFÁS E FERRABRÁS
Por
Táta Nganga Kamuxinzela
@tatakamuxinzela
| @covadecipriano | @quimbandanago
Em várias edições da Revista Nganga,
principalmente a Edição 4, demonstrei como O Livro de São Cipriano
influenciou a Quimbanda em seus dois momentos de manifestação: o período
colonial e o período moderno, a partir da síntese de Aluízio Fontenelle
(1913-1952) na década de 1950. A demonologia de O Livro de São Cipriano
foi fundamental – já no período da Macumba carioca – para a formulação da
hierarquia infernal que veio a configurar a Quimbanda com seus três
demônios-chefes, Lúcifer, Beelzebuth, Ashtaroth e sua legião de diabos,
hierarquia essa que também se configura no Grimorium Verum que, como
demonstrei na Revista Nganga No. 10, compartilha muito de seu conteúdo
com O Livro de São Cipriano. Jake
Stratton Kent (1956-2023) diz:
Na
Espanha e em Portugal, São Cipriano substitui o rei Salomão como herói mágico e
como autor de textos mágicos. Seu Livro é um grimório popular nesses países e
em suas antigas colônias, especialmente no Brasil. Tem muitas variantes e,
embora bem conhecido a partir do século XIX, pode se originar de alguma forma
já no século XVI. O núcleo mágico folclórico do livro é semelhante ao clássico Pow-Wolws de 1820 de John George Hohman, e aos Segredos Egípcios relacionados de Albertus
Magnus etc., assim como aos Segredos Sobrenaturais do próprio Verum.
Segredos semelhantes são encontrados no Grand Grimoire,
que de fato menciona São Cipriano em seu Prelúdio.
Algumas semelhanças são genéricas, as instruções para o feitiço de
invisibilidade têm muito em comum com a versão do Verum,[1]
mas ambas refletem um gênero de longa data que remonta a fontes gregas. Mais
importante, o texto inclui instruções para escrever o pacto que se assemelha
muito as do Verum e não parece ser genérico. Curiosamente, diz-se
que algumas versões em espanhol do Livro de São Cipriano incluem hierarquias espirituais retiradas do Verum.
Também é significativo que o Livro de São Cipriano seja uma característica padrão da Umbanda brasileira,[2]
que pode ter ajudado na difusão dos espíritos do Verum dentro dessa tradição.[3]
Em uma edição brasileira bem popular de O Livro
de São Cipriano, encontramos: O mais alto grau da hierarquia dos
demônios é ocupado pelo imperador lúcifer, o príncipe Belzebu e o duque
Astarot. Cada um deles comanda um par de espíritos de alta hierarquia, cada um
dos quais, por sua vez, comanda outros espíritos.[4]
A qualquer conhecedor dos grimórios, vemos claramente nessa passagem uma
influência profunda do Grimorium Verum, e que acabou por configurar a
Trindade Infernal da Quimbanda a partir de Aluízio Fontenelle. No entanto, por
meio da magia folclórica (ou feitiçaria popular) portuguesa, e das informações
contidas nos arquivos da Inquisição de Portugal, muitas das edições populares
de O Livro de São Cipriano trazem outras configurações de hierarquias
infernais, a maioria delas associadas a feitiços diversos de dominação, e que
se popularizaram no Brasil e acabaram por tomar forma de culto em muitas casas
de cultura afro-brasileira, influenciando a Jurema e os candomblés do Norte e
algumas práticas de Quimbanda no Sul. Sobre essas outras configurações de
hierarquias infernais que aparecem em O Livro de São Cipriano, José
Leitão diz:
A partir dos dados
coletados nos arquivos da Inquisição portuguesa, a magia folclórica urbana
compreendia essencialmente uma tradição oral encontrada nos centros urbanos de
Portugal, Espanha e Brasil, cujos ecos ainda podem ser ouvidos nos muitos
cultos luso-afro-americanos do Brasil, como Umbanda e Quimbanda. A partir da
pesquisa realizada até agora, entre as datas de 1619 e 1758, um total de
oitenta e sete julgamentos de magia popular urbana da Inquisição podem ser
encontrados, localizados exclusivamente na cidade de Lisboa. Esses casos são
tipicamente caracterizados por um grande foco na feitiçaria erótica/dominação e
prejudicial, várias formas de adivinhação para determinar os pensamentos e o
paradeiro de um amante/cônjuge, e o recurso a uma lista um tanto coerente e
recorrente de santos e demônios (cristãos). Icônicos entre eles estão os nomes
da trindade de Barrabás, Caifás e Satanás (inúmeras variações possíveis), Maria
de Padilha (um espírito cujo nome é encontrado pela primeira vez em julgamentos
relacionados a imigrantes castelhanos, mas que gradualmente entrou para o mainstream),
São Erasmo, São Leonardo, Santa Ana, Santa Helena, Marta, a perversa/perdida e,
em menor grau, São Cipriano.[5]
Em um feitiço de malefício em O Livro de São
Cipriano temos como exemplo:
Pegue um sapo, costure sua
boca com barbante preto e, depois que sua boca estiver fechada, diga as
seguintes palavras:
«Sapo, eu,
pelo poder de Lúcifer, Satanás, Barrabás, Caifás e o Diabo mole, e
principalmente em nome do príncipe Beelzebuth e Roberto, o Diabo,[6]
por tudo isso eu te imploro, (NN), que você não tenha mais uma única hora de
saúde, e sua vida eu aprisiono dentro da boca deste sapo, pois ele enfraquece e
perde sua saúde, então o mesmo acontecerá com você pelo poder de Lúcifer.»
Dessa forma,
essa feitiçaria é realizada. Em seguida, coloque o sapo dentro de uma panela
sem nada para comer.[7]
Esse feitiço de O Livro
de São Cipriano existe na Quimbanda, mas com variações, e já tive a
oportunidade de divulgar fotografias dele no meu perfil oficial no Instagram
por volta de 2021.
Dessa forma, a trindade
Satanás, Caifás e Ferrabrás é reverenciada e associada ao Culto de Exu no Norte
e Sul do Brasil por assimilação a tradição folclórica e mitológica da
feitiçaria popular ibérica, tendo São Cipriano como espírito intercessor
entre a feitiçaria portuguesa e a feitiçaria africana em solo brasileiro. E é
dessa forma, como um espírito tutelar intermediário, que São Cipriano e seu
Livro são considerados na tradição cipriânica. Cipriano deveria, em
princípio, ser entendido como um guia para aquela experiência maravilhosa
quando o feiticeiro finalmente alcança o conhecimento e conversação com seu
espírito patrono.[8]
O meu Cipriano […] tem um papel importante na manutenção [de minhas]
relações com várias entidades; em particular os espíritos dos grimórios
(especificamente aqueles do Grimorium Verum) e dos mortos (a maioria locais,
incluindo romanos pré-cristiãos). Isso obviamente inclui espíritos bem sombrios.
[…] São Cipriano pode mediar [a comunicação entre] o magista que busca seu
espírito patrono e o espírito que lhe ensinará as Artes Negras.[9]
É dessa forma, como um intercessor entre a cultura mágica da Europa e a
cultura mágica da África em solo brasileiro, que O Livro de São Cipriano
se torna a ponte para a incursão diabólica dos demônios e diabos europeus
na feitiçaria afro-brasileira no fim do Séc. XIX, influenciando o Candomblé, a
Jurema, a Macumba carioca e, derivadas dela, a Umbanda e Quimbanda. Como diz
João do Rio (1881-1921):
Mas o que não sabem os que
sustentam os feiticeiros, é que a base, o fundo de toda a sua ciência é o Livro
de São Cipriano. Os maiores alufás, os mais complicados pais-de-santo, têm
escondida entre os tiras e a bicharada uma edição nada fantástica do São
Cipriano. Enquanto criaturas chorosas esperam os quebrantos e as misturadas
fatais os negros soletram o São Cipriano, à luz dos candeeiros.[10]
E esse é um fundamento
antigo da Macumba que hoje preservamos na Quimbanda Nàgô.
Caifás foi o sumo
sacerdote judeu que presidiu o julgamento de Jesus Cristo, sendo responsável
por sua condenação. Na feitiçaria popular europeia, Caifás tornou-se um diabo
associado ao julgamento implacável dos pecadores, condenando-os ao inferno.
Ferrabrás é um diabo da magia folclórica medieval europeia, retratado hora como
um gigante de feições grotescas, hora como um feroz cavaleiro. No folclore gaúcho,
Ferrabrás é um genii loci, um diabo associado a proteção das florestas e
das fontes de água, mas também temido por seu poder caótico. Satanás, por outro
lado, é associado a incorporação total do mal e inimigo de Deus. No folclore
brasileiro, Satanás foi relacionado não apenas ao mal, mas especialmente tornou-se
um símbolo da tentação, sendo capaz de corromper as almas e leva-las ao pecado.
Essa trindade, por suas atribuições, foi associada as práticas de magia cujo
objetivo é o domínio e controle das forças sobrenaturais, daí convocada em
feitiços diversos e, quando reverenciadas no Culto de Exu, representam o próprio
poder da magia e o controle sobre todos os Exus.
Na demonologia de O
Livro de São Cipriano, Caifás tornou-se o juiz do inferno e como tal, um
demônio de alta hierarquia, presidindo também inúmeros pactos demoníacos.
Ferrabrás tornou-se um demônio associado a guerra mágica e a proteção
espiritual, com variações em inúmeras edições. E Satanás, por outro lado, foi
associado a obtenção de conhecimento e poderes ocultos, assim como proteção
contra forças malignas, também com variações a depender da edição.
É dessa forma, por meio
dos fluxos e refluxos da cultura mágica do brasil (luso-afro-ameríndia), que
Satanás, Caifás e Ferrabrás se tornaram Maiorais em inúmeras choupanas do Culto
de Exu no Sul e Norte do Brasil.
[1] N.T. Relação estabelecida
e comparada no primeiro volume do Daemonium. Clube de Autores, 2019.
[2] N.T. Leia-se Quimbanda.
[3] Jake Stratton-Kent. The True
Grimoire: Encyclopaedia Goetica. Vol. 1. Scarlet Imprint, 2022, pp. 22. É interessante notar que os
espíritos da hierarquia infernal que tanto aparecem no Grimorium verum quanto em O Livro de São
Cipriano, já eram
mencionados (senão convocados) pelos kimbandas das antigas Macumbas.
[4] O Livro de São Cipriano: Tradado Completo da
Verdadeira Magia. Pallas,
2017, pp. 99.
[5] José Leitão. Clearing the Waters. Hadean Press, 2022,
pp. 20.
[6] N.T. Referência ao conto
folclórico de Roberto, o Diabo, que narra como um indivíduo execrável se torna
um monge cristão exemplar. Modelo típico das narrativas que compõem O Livro
de São Cipriano contra o exercício da feitiçaria e o pacto com o Diabo.
Veja o primeiro volume do Daemonium (Clube de Autores, 2019).
[7] José Leitão. The Book
of St. Cyprian: the Sorcerer’s Treasure. Hadean Press, 2014, pp. 112.
[8] Humberto Maggi, Scientia Diabolicam. Clube de Autores, 2018.
[9] Jake Stratton-Kent. Seven
Yars the Sea Thou Roamed: Cyprianic Ritual and Divination. Artigo publicado
em Cypriana Old World (ed. Alexander Cummins, Jesse Rathaway Diaz e
Jennifer Zahrt). Revelore Press, 2017, pp. 163.
[10] João do Rio, As Religiões do Rio, 1904.