ÒGÚN, ÈṢÚ & O EXU-DIABO DA QUIMBANDA
Por
Táta Nganga Kamuxinzela
@tatakamuxinzela
| @covadecipriano | @quimbandanago
De modo geral, Ògún teve um impacto profundo em
vários cultos e tradições derivadas da diáspora, sendo associado aos poderes da
magia para ataque e defesa, sob os símbolos vermelho e azul do fogo, a lança e
a espada do ferro; a caça, o impulso de desenvolvimento, a guerra e o domínio.
No imaginário brasileiro, Ògún é o arquétipo do caçador primordial. Daí, por extensão desde o início, devido à
importância de Ògúm e sua representação hierofônica, a Quimbanda herda essa
virtude ancestral de guerra, caça, abate, domínio (força) e expansão do
território, e isso está em sincronia, em certa medida, com a tradição
fáustica-cipriânica europeia.
Na Religião Tradicional
Yorùbá, é Ògún que permite Èṣú, seu irmão, utilizar ou compartilhar seus
poderes. Ògún é dono do mistério vermelho (awon pupa), a terra
que provê sustentação a ação do progresso, mobilidade e evolução de tudo o que
é animado no reino da geração. Ògún é um mestre ferreiro que domina o fogo,
além de guerreiro e patrono dos caçadores. Ògún assume a própria forma do fogo
e, portanto, é o domador do ferro, componente que enriquece o sangue.
Assim, Ógún é ainda o patrono do esqueleto humano e do uso do sangue.
Ògún é a inteligência
espiritual que forja e transborda força e vida por meio de sua ação ígnea
crepitante a qualquer estrutura ou caminho. Por isso ele é associado à força
vital, seu impulso para cópula sexual, guerra e agressão. Ògún representa toda
força do fogo e o ímpeto de desenvolvimento no homem, no grupo e em toda a
sociedade.
E é interessante notar
também que Ògún é dito vir do lado esquerdo, daí sua ação de domínio e
expulsão de ajoguns, espíritos zombeteiros associados a todo tipo de
infortúnios na vida do homem. Então Ògún ganha um papel importante nas
primeiras décadas da Quimbanda pelas virtudes que possui.
Como falei no livro Ganga: a
Quimbanda no Renascer da Magia, a influência de Ògún na Quimbanda é transparente:
a pimenta ardida, o ferro, o fogo, o sangue, as bebidas quentes (água de fogo)
etc., são elementos de culto a Ògún na África.
No culto tradicional yorùbá, o Iṣéṣé Làgbà,
Èṣú carrega a virtude mercurial da comunicação entre os planos material e
espiritual. É Èṣú o agente de comunicação que carregar as orações dos
homens até Olúdùmarè, o dono do Mundo. Èṣú é amigo íntimo e confidente de
Òrúnmìlà, deidade yorùbá da sabedoria, e se encontra no centro de toda e
qualquer encruzilhada, de onde ele observa todos os eventos em todos os lugares
do Mundo. Èṣú carrega o tacape da punição, com o qual ele castiga os homens,
instigando-os a confusão na intenção de corrigir o caráter das pessoas. Algumas
casas antigas de Candomblé interpretaram que, sendo Èṣú esse espírito irascível
e indomável, ele deveria comer primeiro na intenção de ser apaziguado e não
trazer confusão para a ordem do ritual, deixando-o fora do ambiente do
barracão.
Mas no Iṣéṣé Làgbà não é assim. Tanto no Iṣéṣé
quanto no Ifá, Èṣú come primeiro porque ele está no limiar entre o mundo
dos espíritos e o mundo dos homens e, portanto, compreende todas as situações
da perspectiva espiritual e da perspectiva humana. Èṣú é, assim, uma ponte, uma
encruzilhada entre os reinos visível e invisível.
Èṣú é o mensageiro das deidades yorùbá. É
ele quem carrega os sacrifícios dos homens até os òrìṣà e ìrúnmolè,
tornando-os efetivos. A alcunha de trapaceiro dada a Èṣú nada mais é do que seu
poder de escolha representado pelo símbolo da encruzilhada. Èṣú é o guardião da
própria força vital que anima o Cosmos e um de seus símbolos mais potentes é o
poder do magma, o fogo líquido das profundezas da Terra (inferius) que
brota do centro da encruzilhada. Por conta disso, Èṣú é vitalidade e vigor,
virtudes sempre representadas na forma de um falo ereto, um bastão ou tacape;
portanto, Èṣú é a inteligência espiritual da força ativa e dinâmica do Cosmos,
associado à multiplicidade, porque está em toda parte e vai a todo lugar. Assim
como o Hermes-Thoth greco-egípcio, Èṣú é o Senhor do Bastão, àquele que carrega
a Dupla Baqueta de Poder que atravessa o espaço e o tempo com rapidez.
O Exu-Diabo e seu culto na Quimbanda concentram as
virtudes destes dois òrìṣà, Èṣú e Ògún, fundidas em uma só entidade.Tanto Èṣú quanto Ògún na África foram diabolizados
antes de chegarem ao Brasil. Por conta de suas virtudes e características
peculiares, para os cristãos missionários do Séc. XVIII eles eram demônios e Èṣú
em especial, o Diabo, devido aos cornos e o falo ereto, assim como era
retratado o Diabo do Sabbath das Bruxas.
Mas não é sua associação com o princípio do Mal que o assemelha a Éṣú; na Bíblia,
o Diabo tentava os indivíduos por ordem do Deus todo poderoso; o Diabo levou Jó
ao limite do desespero porque Deus permitiu (Jó 2:7); no deserto, o Diabo tentou Jesus porque Deus também
permitiu (Mateus 4:1); quando o Diabo
aplicava alguma punição, era por meio do julgamento de Deus (Zacarias 3:1). Então o Diabo exerce uma função no Cosmos. O Diabo
conhece todos os segredos do Cosmos; o Diabo é capaz de curar, de amaldiçoar e
punir; o Diabo pode dar todas as coisas que facilitam a vida na matéria; por
isso ele é o Rei deste Mundo, o Senhor de todas as Bestas, o Espírito Selvagem
da Natureza. Todas essas virtudes foram associadas a Exu e, sobre tudo, ao
Chefe Império Maioral. A própria ideia de que Exu é uma função, assim como o Diabo o é, já foi interpretada de maneiras
distintas por inúmeras vertentes de Umbanda. E isso está em acordo a uma
passagem de Fontenelle, levando em conta toda essa miscigenação mágico-cultural
que tratamos até aqui, onde ele coloca Maioral como uma função: Ele [i.e. Maioral]
trabalha com diversas falanges em cumprimento às determinações que lhe são
impostas pelo divino criador. (Aluízio Fontenelle. Exu, Editora
Espiritualista, 1954, pp. 105.)
Excerto da terceira edição
do Daemonium: A Quimbanda & a Nova Síntese da Magia (no
prelo).