TRANSGÊNERO NA QUIMBANDA
Por Táta Nganga Kamuxinzela & Táta
Nganga Zelawapanzu
@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago |
@covadetiriri
Temos recebido diversas perguntas sobre transgêneros
dentro da Quimbanda, principalmente a seguinte: se uma pessoa transgênero,
supondo ser homem de nascimento e transgênero feminino, ela será táta ou
mameto?
Essa é uma pergunta que a princípio pode parecer simples
de responder, mas não é bem assim, porque a Quimbanda opera sob uma estrutura
de funcionamento do Cosmos – que deve ser respeitada, independente
das questões pessoais e individuais – herdada do Ocultismo francês do
fim do Séc. XIX. Inúmeras matérias do Ocultismo francês são
tijolos da estrutura fundante da Quimbanda, como o magnetismo animal e
o conhecimento aplicado das polaridades na condução ou manipulação do
magnetismo. Muito embora africanistas de olhos verdes torçam o nariz
quando associamos a Quimbanda ao Ocultismo, em verdade e como demonstra o
autor José Leitão, o Ocultismo produzido pela escola francesa de
magia – de inclinação teosófica cristã e política de direita – influenciou
profundamente a formação da Umbanda e Quimbanda:
Parte da moralidade da história é do Século XIX […], em
primeiro lugar na menção do «Magnetismo» como uma forma de magia branca divina.
Essa forma de magnetismo divino sugere uma corrente histórica muito particular
de ideias, ou seja, aquelas mais em aliança com Jules Denis, o Barão du Potet,
que por sua vez influenciaria nomes como E. A. Waite, Eliphas Levi, Blavatsky e
Mary Atwood.Em aliança com os mesmeristas espirituais, que com o
tempo dariam origem aos espíritas franceses e aos espiritistas anglo-americanos
(dos quais toda a história do Ocultismo contemporâneo deriva), du Potet
realmente proclamou que o magnetismo era o Espírito Divino dado ao Homem, e na
verdade era uma ferramenta divina usada por Deus no processo de criação. Isso
implicou uma reestruturação e reconceitualização de toda a magia e religião
[…] em relação ao uso adequado de poderes e técnicas magnéticas, basicamente
[preparando] os tijolos para muito do pensamento mágico de Levi.Embora seja um desvio, isso nos oferece algumas
possibilidades muito claras dos círculos intelectuais em que esta versão
específica do Livro [de São Cipriano] estava sendo estruturada. Parece haver um
claro conhecimento e preocupação com práticas comuns de magia popular, uma
visão simpática das dificuldades de imigração portuguesa e, finalmente, uma
naturalização racional da magia adequada e divina no magnetismo e em outras
ideologias derivadas [dos ocultistas] franceses do Século XIX, muito em voga no
Brasil na época e que eventualmente dariam origem a Umbanda, Quimbanda e muitas
outras coisas.[1]
De acordo com uma das ideias mais difundidas no
pensamento alquímico, a matéria contém uma luz ou um fogo invisível cuja
natureza é a mesma da Palavra que criou a Luz no primeiro dia da Criação. Esse
princípio ígneo, situado a meio caminho entre o mundo natural e o mundo suprassensível,
também ocupa um lugar importante em muitos discursos cosmológicos do Ocidente.
Ele tem sido utilizado para interpretar a ideia platônica da Alma do Mundo
e se diversificou em inúmeros temas como a Luz Astral.
Um dos expoentes mais significantes para nós aqui
e que desenvolveu um trabalho terapêutico com o magnetismo animal foi o médico
suábio Franz Anton Mesmer (1734–1815), que desenvolveu o mesmerismo, que
logo se tornou uma fonte de inspiração para a maioria dos representantes das
correntes esotéricas da época.
Já em 1766, em sua tese de doutorado, De
influência planetarum in corpus humanum, Mesmer postulou a existência de um
fluido invisível espalhado por toda parte. Ele serviria como veículo para a
influência mútua que os corpos celestes exerceriam entre si, a Terra e os
corpos animados – daí a expressão magnetismo animal geralmente usada
para se referir a essa teoria e às práticas a ela relacionadas. Depois de
cuidar de seus pacientes inicialmente pela aplicação de ímãs (um procedimento
posteriormente readotado por Jean-Martin Charcot), e depois pela imposição de
mãos, ele desenvolveu uma terapia que consistia em fazer as pessoas sentarem
uma ao lado da outra ao redor de uma banheira – o famoso baquet –
contendo água, limalhas de ferro e areia. Eles se comunicavam com a banheira
por meio de hastes ou cordas de ferro e formavam assim uma «corrente» para
transmitir para os corpos dos pacientes doentes o «magnetismo» dos sujeitos
saudáveis.
Embora fosse um materialista convicto, Mesmer deu
às suas atividades um caráter iniciático ao criar em 1783 a Sociedade
da Harmonia, cujos símbolos foram inspirados no estilo maçônico. E, em
1785, escreveu que somos dotados de um sentido interno que está em relação
com todo o universo – uma ideia que não deixaria de criar muitas
repercussões nas correntes esotéricas nascidas naquele período. Longe de se
espalhar na forma específica que Mesmer tentou conferir a ela, o magnetismo
animal logo pôde ser visto operando em várias direções, influenciando a
alta magia de Eliphas Levi (1810-1875) e os passes e transes mediúnicos do
espiritismo de Allan Kardec (1804-1869).
Notavelmente, enquanto Mesmer concebeu a prática
para um propósito essencialmente terapêutico, já em 1784, na França, o Marquês
Armand Marie Jacques de Chastenet de Puységur (1727–1807), que magnetizava
seus sujeitos levando-os a um estado de consciência próximo ao sono, acreditava
ter descoberto a possibilidade de controle não verbal exercido sobre eles pelo
magnetizador. Ele foi um dos primeiros a considerar os suportes materiais
usados por Mesmer (como ímãs, banheiras, etc.) como não essenciais. Ele também
foi um dos primeiros, na história do magnetismo animal, a tentar mostrar
que uma pessoa magnetizada às vezes pode ser capaz de vidência, ou seja, ver
objetos que estão escondidos ou situados em lugares distantes, prever coisas no
futuro, diagnosticar doenças e indicar seus remédios, e assim por diante.
Assim, aberto ao paranormal, o magnetismo animal poderia até ser
considerado por muitos como um meio de estabelecer contatos com o além.
O magnetismo animal não era apenas uma moda
ou um episódio isolado, mas representava uma tendência cultural muito
importante no crepúsculo do Iluminismo, no pensamento romântico em sentido
amplo e na história da psiquiatria dinâmica até a época de Sigmund Freud (1856-1939),
inclusive.
No período de formação da Umbanda essas ideias do Ocultismo francês
estavam na moda no Brasil, já desde o tempo das Macumbas. O espiritismo de
Kardec chegou no Brasil em 1863, assim como Lojas maçônicas e outros grupos
esotéricos que difundiam essas ideias em terras brasileiras. Esse foi o momento
na história em que a França era a rota da seda da cultura no mundo.
Quando falamos de polaridade, nos referimos as
questões técnicas do Ocultismo que envolvem as forças Solares e Lunares na
manipulação e projeção do magnetismo e que, na obra de Eliphas Levi
que tanto influenciou a Quimbanda, tornou-se a luz astral ou agente
mágico universal. Como demonstrado no livro Ganga: a Quimbanda no Renascer
da Magia, a luz astral ou agente mágico universal é o ambiente
mágico da Quimbanda, o corpo do Chefe Império Maioral. O mesmerista,
o mago ou o kimbanda manipulam as correntes de força
ódica magnética ou o agente mágico universal para o propósito da
magia ou de cura.
A iconografia que a Quimbanda adotou para representar
esse agente mágico universal é o Diabo de Eliphas Levi, o Baphomet.
Tudo nessa representação pictórica envolve a polaridade, que pode ser expressa
por chaves de conhecimento tais como:
Solar: ativo,
masculino, positivo, quente etc.Lunar: passiva,
feminina, negativa, fria etc.
Do corpo de Maioral projetam-se essas duas
forças: a masculina representada por Exu e a feminina representada por
Pombagira. Essas duas forças, em equilíbrio e interação dinâmica, são
responsáveis por todos os processos mágicos dentro do corpo de
Maioral, os Reinos da Quimbanda. Então essas duas forças polarizadas têm um
trabalho importante na manutenção do cosmos da Quimbanda, cada uma em
seu devido lugar. Então aqui precisamos nos afastar um pouco do entendimento
pessoal e abranger o pensamento mágico. Dentro de várias técnicas, cultos e
práticas mágicas a manipulação dessas polaridades é que irá criar a magia e a
mudança tão esperada na realidade das pessoas; portanto, essas «chaves gerais
de acesso» devem ser respeitadas para que a magia aconteça.
Em todo ato mágico existe, mesmo que simbolicamente, um
ato de magia sexual, que não necessariamente deve ser um ato sexual
consumado fisicamente. Na Missa Gnóstica da O.T.O. (Ordo Templi
Orientis), a Sacerdotisa sentada no altar, nua, estende o Cálice (representante
da vulva) para o Sacerdote, que nele introduz a Lança (representante do falo).
Este ato pode parecer simbólico, mas efetivamente é magico. A Missa
Gnóstica é um rito de magia sexual dramatizada. Na Quimbanda ocorre algo
parecido. Em um toque de Quimbanda, Exu com seu tridente (representante do
falo) ara a terra, enquanto que a Pombagira com sua Saia (representante da
vulva), irriga a terra que Exu arou. Neste sentido simbólico, todo toque de
Quimbanda pode ser interpretado como um rito de magia sexual dramatizada onde
as polaridades Macho-Exu e Fêmea-Pombagira pitam, bebem e dançam enquanto
manipulam a luz astral.
Então quando vemos na Quimbanda a interação entre Exu e
Pombagira, podemos perceber que são polos opostos que se complementam em busca
de uma movimentação mágica, independente se a Pombagira tem uma
característica mais «bruta» ou masculina ou um Exu tem uma característica mais
«delicada» ou feminina. Vemos isso ocorrendo nas manifestações das Pombagiras
Maria Quitéria e Táta Mulambo, que são mais embrutecidas, tomando destilados
fortes, fumando charutos etc. Atitudes estas que esperamos de um Exu! Também
vemos alguns Exus como Exu Veludo tomando licores e vinhos refinados, fumando
tabacos e pequenos charutinhos (quase cigarrilhas), e tendo atitudes que
esperamos mais das Pombagiras. Entretanto repare, que mesmo com o «lado mais
feminino» de Exu Veludo, ele ainda se apresenta como EXU e, apesar do «lado
mais masculino» de Táta Mulambo, ela ainda se apresenta como POMBAGIRA.
Desta forma, podemos entender que uma pessoa transgênero
– que não se enxerga no corpo biológico e no gênero de nascimento – mesmo
usando roupas de gênero oposto, tendo atitudes do gênero oposto ao do seu
nascimento, mesmo usando pronomes do gênero oposto do seu nascimento, ainda
assim biologicamente (em polaridade também) serão Homens ou Mulheres. Desta
forma, pela tradição, um homem transgênero (mulher de nascimento) será chamado
de Mameto e uma mulher transgênero (homem de nascimento) será chamado de Táta.
[1] José Leitão. Opuscula
Cypriany: variation on the Book of the Saint Cyprian and Related Literature.
Hadean Press, 2019, pp. 404.